Materiais Curriculares Educativos
Uma questão sociocientífica sobre racismo e sexismo em propagandas
O ensino de Ciências sempre foi marcado pela diversidade de estratégias e metodologias de ensino que continuam a se diversificar para dar conta das crescentes demandas da sociedade. As Questões Socio-Científicas (QSCs) são uma das novas ferramentas de ensino e, geralmente, mas não exclusivamente, são aplicadas em propostas de educação CTSA que examinam criticamente as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente.
As QSCs possibilitam a abordagem e o exame da complexidade de questões científicas com importantes implicações sociais e que envolvem tensões éticas e políticas. Elas podem ser desenvolvidas a partir de uma variedade de temas em diferentes contextos educativos estimulando o interesse e engajamento dos estudantes que são estimulados a protagonizar sua aprendizagem, e a usar o conhecimento científico em questões cotidianas, estabelecendo algumas relações complexas envolvidas na relação entre ciência e sociedade.
Geralmente as QSCs trazem um caso (pode ser real ou fictício) que aborda uma questão controversa em que os estudantes são convidados a se posicionar. Para que a resolução desse caso tenha maior eficiência no alcance de objetivos de ensino, podem ser utilizadas questões orientadoras para organizar didaticamente o exame do caso pelos estudantes com apoio do(a) professor (a).
Trouxemos aqui uma proposta de ensino baseada em uma QSC sobre a (re) produção de racismo e sexismo em propagandas, que possibilita o trabalho com diversas áreas do conhecimento, a depender do enfoque das questões trabalhadas. As áreas relacionadas e suas respectivas subáreas de maior interesse a considerar são: Biologia (Biologia Evolutiva e Anatomia), Filosofia (Filosofia moral), Ciências Sociais/Sociologia (Cultura, Comportamento Social, Política), História (História da Ciência).
Para tanto, apresentamos um caso, uma lista de objetivos educacionais que se pretende alcançar, e um conjunto de questões orientadoras. As questões orientadoras foram desenvolvidas tendo em vista os objetivos educacionais, agrupados em conceituais, procedimentais e atitudinais, conforme (ZABALA E ARNAU, 2008). Os objetivos conceituais dizem respeito à compreensão de conceitos, princípios, fatos e evidências, os procedidimentais estão relacionados ao desenvolvimento de habilidades técnicas e metodológicas, e os atitudinais referem-se ao exame de valores, normas e atitudes, sobre as quais cabem juízo moral, logo, considerando aspectos éticos e políticos da prática científica. Serão indicados quais objetivos buscava-se alcançar com cada uma das questões orientadoras.
Essa proposta foi desenvolvida em uma disciplina de mestrado e depois foi debatida por professores e professoras, mas ainda não temos dados sistematizados de sua aplicação em sala de aula. A QSC apresentada pode ser trabalhada dentro de uma sequência didática mais ampla, que pode ser utilizada num contexto de ensino de biologia, respeitando-se as particularidades de cada contexto e realizando as adaptações necessárias. No artigo “Racismo e sexismo no ensino de biologia: uma proposta de ensino baseada em questões sociocientíficas para a formação de uma cidadania crítica”, apresentamos uma discussão mais aprofundada das possibilidades de aplicação e questões teóricas que fundamentaram o desenvolvimento dessa proposta.
Um dos princípios que orientou o seu desenvolvimento foi o de examinar como os discursos sobre raças nas ciências naturais circularam e circulam em debates, instâncias e outras instituições sociais, nesse caso, especificamente, na mídia. Busca-se, desse modo, promover compreensão crítica a respeito da origem de estereótipos, ideologias de inferioridade, processos de negação/afirmação da diversidade, envolvidos nas relações étnico-raciais. Nesse caso, adotou-se também o exame das intersecções da raça com outras categorias de alterização e identidade, especialmente, as de sexo e gênero, ao interpretar os processos de segregação e opressão, em que discursos científicos e midiáticos estiveram envolvidos
Sexismo e racismo na ciência e na mídia:
A ciência e a mídia são duas instituições sociais de poder que podem consolidar alguns padrões de comportamentos e atitudes por meio de discursos de autoridade. Na sessão Ciência, Raça e Educação ( orientações pedagógicas) trazemos um panorama de como a ciência atuou e ainda atua na segmentação racial da sociedade, e como a educação tem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais equânime. Para examinar em sala de aula como racismo e sexismo operam nas relações sociais, optamos por trazer os discursos midiáticos, com objetivo de estimular a leitura crítica desse discurso tão difundido socialmente, e o que o racismo científico teve para a construção de estereótipos de raça e gênero. Um breve passeio pelas propagandas de cerveja e podemos constatar o quanto o sexismo e racismo se fazem presentes, de forma bastante explícita e naturalizada, estimulando a repetição de padrões que mantém uma sociedade violenta e desigual para mulheres e negr@s.
O caso de Marina
Marina é uma estudante do 3º ano, negra, filha de Marcos, advogado e de Lúcia que trabalha como consultora de produtos cosméticos e é dona de casa.
Nos últimos dias, Marina ouviu uma conversa do pai com um cliente que é publicitário de uma cervejaria, a empresa procurava os serviços de Marcos porque estava sendo processada por veicular conteúdo racista e sexista na propaganda.
A propaganda em questão se refere a uma cerveja preta (estilo Dark), cujo anúncio envolve uma associação do produto com o corpo da mulher negra. No layout há ao lado da cerveja uma representação de uma mulher negra com trajes sensuais em uma posição provocante e ao lado a seguinte frase: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra.”
Tal propaganda recebeu processos do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e de algumas pessoas que se sentiram ofendidas.
Neste sentido, a empresa se preocupou em responder aos processos deferidos. Houve uma conversa entre Marcos e o publicitário. E Marina ouviu alguns trechos desse diálogo:
O cliente disse:
– O meu departamento de propaganda agiu de forma irresponsável… Mas admito que ninguém da empresa atentou pra isso, essa onda de politicamente correto está acabando com a criatividade, nem piadas podemos mais fazer, esses ativistas levam tudo muito a sério! Não tem espírito esportivo! Antigamente não tinha isso, as coisas eram mais simples…
O pai de Marina, já acostumado a tratar processos dessa natureza, disse:
– Sim, entendo perfeitamente o que você diz porque o que eu vejo atualmente é que as pessoas condenam tanto as propagandas, as atitudes dos outros, mas não enxergam que mesmo com todas essas historinhas e movimentos, a vida é assim! Isso já faz parte de nossa sociedade, é impossível mudar!
– É, mas mesmo assim temos que tomar cuidado, a veiculação do nosso produto a este tipo de discussão pode diminuir nossa clientela, nunca é bom um processo, pior ainda é a propaganda negativa! – exclamou o cliente.
Marina, atrasada para o colégio, não teve tempo para conversar com o pai sobre isso. Ao chegar na escola comentou com seus colegas o caso, o que gerou um discussão polêmica com diferentes posicionamentos.
A professora de Biologia ao chegar na sala e se deparar com esse quadro, quis continuar o debate e falou sobre algumas questões para essa discussão e comentou a respeito de alguns estudos como o de Paul Broca e de Charles Darwin.
Ao chegar em casa, Marina conversou com o pai acerca do que aconteceu. O pai em contrapartida disse a Marina que não concorda com a opinião do cliente, mas que tinha que fazer seu trabalho, até porque, enquanto negro, não achava nada engraçado o racismo.
Como o tempo de aula não foi suficiente para tratar as discussões, Marina e seus colegas foram pesquisar mais sobre o tema que seria melhor discutido nas aulas posteriores de Biologia. Encontraram alguns casos parecidos, mas muitas questões ainda os intrigavam…
Observação: o caso foi baseado em fatos reais, e a imagem da propaganda, bem como informações sobre as repercussões podem ser encontradas em notícias e reportagens como: https://www.geledes.org.br/anuncio-da-devassa-e-considerado-racista-e-sexista-pelo-conar/
Questões Norteadoras
A professora de Biologia de Marina comentou sobre alguns estudos de cientistas como o Paul Broca e Charles Darwin. Com base nos textos apresentados (que serão distribuídos para os estudantes, ver abaixo em recursos), responda as questões abaixo:
Q.1 Os estudos de Paul Broca, Charles Darwin foram realizadas em que época? Qual o contexto social em relação às questões de raça e gênero?
Q.2 Qual a relação entre as produções desses cientistas e o contexto que eles viviam?
Q.3 E atualmente qual a relação entre o contexto científico e o contexto social? Construa um argumento para defender seu posicionamento.
Q.4 Do ponto de vista biológico, apresente argumentos que justificariam a afirmação: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra!”
Q.5 Quais as implicações quando há veiculação de conteúdos racistas e sexistas para os publicitários e consumidores?
Q.6 Sobre o caso da propaganda busque casos semelhantes (processos no CONAR e pessoa física) e com base nesta pesquisa, construa um argumento que poderia ser utilizado pelo CONAR, outro para a pessoa física e outro para a empresa de cervejaria defendendo o posicionamento assumido de acordo com o caso.
Q.7 O que você faria na condição de um publicitário sobre essas questões? E na condição de consumidor?
Q.8 O que você acha da atitude do pai de Marina ao defender judicialmente uma ideia que não concorda por conta de seu trabalho?
Q.9 O que você acha da preocupação do empresário com a veiculação do produto com propaganda negativa? Você deixaria de comprar o produto por conta dessa propaganda?
Q.10 Sobre a declaração do empresário: “Antigamente não tinha isso…”, a que tipo de mudança você acha que ele se refere?
Objetivos Educacionais
Conceituais:
- Compreender e discutir sobre formas de construção da ciência, a partir da abordagem contextual de Matthews e sobre os estudos de anatomia, Darwinismo. (Q.1; Q.2)
- Entender como o discurso científico pode influenciar a formação de padrões sociais (determinismo biológico) (Q.3; Q.4)
- Compreender as legislações (Código do Consumidor) que regulamentam as propagandas publicitárias e conhecer órgãos envolvidos na fiscalização (CONAR- – Conselho Nacional de Auto regulamentação Publicitária) (Q.6)
- Entender os aspectos históricos e sociais envolvidos na perpetuação de preconceitos raciais e de gênero, como falhas morais (Q.5)
Compreender como os discursos de autoridade aparecem na sociedade contemporânea (Q.3; Q.8)
Procedimentais:
- Realizar levantamentos de bibliografia e outros materiais sobre o tema, em bases de dados acadêmicos, como Web of Science e Scielo. Realizar pesquisas, atentando para os lados envolvidos (Q.6)
- Construir argumentos convincentes (Q.6)
Atitudinais:
- Elaboração de critérios para tomar posição frente àquilo que deve considerar positivo ou negativo em relação à produção científica (Q.8; Q.9; Q.10)
- Se posicionar frente às questões de preconceito racial e de gênero de forma crítica e se colocar também como agente ativo neste processo; (imediato e a longo prazo) (Q.7; Q.9; Q.10)
- Respeitar as ideias dos(as) colegas, mesmo que estas sejam consideradas erradas; (imediato e a longo prazo) (Q.7; Q.8; Q.9; Q.10)
Recursos
Para apoiar os estudantes na discussão do caso de modo a alcançar os objetivos educacionais, estamos propondo o trabalho com textos adaptados para o público de estudantes de escola básica (ou ensino superior) que explicitem os estudos dos cientistas sobre suposta superioridade de alguns grupos humanos. Algumas das fontes em que esses textos podem ser retirados são: os livros “O espetáculo das raças” de Lilian Schwarcz (1993) e “ Afalsa medida dos homens” de Stephen Jay Gould – para uma literatura secundária – e “A origem do homem e a seleção sexual” de Charles Darwin (1974) – para literatura primária. Abaixo, reproduzimos alguns trechos possíveis de serem usados:
Citações de Charles Darwin (1809-1822), naturalista, geólogo e biólogo britânico, um dos principais autores do pensamento evolutivo nas ciências biológicas, autor da teoria da evolução por seleção natural:
O homem é mais corajoso, agressivo e enérgico que a mulher, além de possuir maior criatividade. Em termos absolutos seu cérebro é absolutamente maior, embora não se possa garantir, segundo acredito, que isso também se dê em termos relativos, ou seja, proporcionais ao seu maior tamanho corporal. Na mulher, o rsto é mais redondo, as mandíbulas e a base do crânio menores, a silhueta do corpo mais esguia, com certas partes mais proeminentes, e sua bacia pélvica é mais larga que a do homem (1871 [2004], p.491).
Pouca dúvida pode haver quanto a que o maior tamanho e força do homem em relação à mulher, juntamente com seus ombros mais largos, músculos mais desenvolvidos, silhueta corporal robusta, maior coragem e agressividade, todas essas diferenças tenham sido herdadas de algum ancestral masculino, que, como os atuais antropóides, era assim caracterizado. Esses caracteres devem ter sido preservados ou mesmo aumentados durante o longo intervalo de tempo em que o homem se conservou em condições bárbaras, pelo fato de os mais fortes e arrojados se terem saído melhor tanto na luta geral pela existência, como na arte de conseguir esposas, deixando desse modo maior número de descendentes. (…) Entre os civilizados, há tempos que cessou o costume de lutar para conquistar esposas. Por outro lado, os homens, como regra geral, têm de trabalhar mais duramente que as mulheres para sua mútua subisistência, o que explicaria a conservação da força” (1871 [2004], p. 497)
Esses trechos foram retirados do livro A Origem do Homem e a Seleção Sexual, escrito por Darwin em 1871. Usamos a edição em português, publicada pela editora Itatiaia em 2004, com tradução de Eugênio Amado.
Citações de Paul Broca (1824-1880), craniometrista francês, fundador da Sociedade Antropológica de Paris (1859)
Em geral, o cérebro é maior nos adultos que nos anciões, no homem que na mulher, nos homens eminentes que nos brancos medíocres, nas raças superiores que nas inferiores (1861, p.304)… Em igualdade de condições, existe uma notável relação entre desenvolvimento da inteligência e o volume do cérebro. (p.188)
Essa afirmações foram feita por Broca no trabalho Sobre o volume e a forma do cérebro de acordo com os indivíduos e de acordo com as raças, publicado em um volume do Boletim da Sociedade de Antropologia de Paris, e transcrita no livro A falsa Medida do Homem de Stephen Jay Gould (1999, p.76)