DESCREVENDO SALA DE AULA
A sequência didática que apresentamos nesse MCE é composta por 6 aulas, de 100 minutos cada. Ela foi elaborada e testada em dois contextos distintos. O primeiro, por meio da aplicação em sala de aula, com uma turma do 4º semestre de licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), na disciplina “Construção do Conhecimento Escolar e Ensino de Evolução”. A turma era composta por 22 estudantes, sendo 19 do sexo feminino e 3 do sexo masculino. No segundo contexto, a sequência didática foi avaliada por três grupos de especialistas: 1) Professoras/es de Biologia, que são também pesquisadoras/es da área de ensino de Ciências e Biologia; 2) Pesquisadoras da Doença Falciforme, da área de Saúde Coletiva; 3) Participantes de organizações sociais de apoio a pessoas com Doença Falciforme.
Para o nosso propósito nesta Aba “Descrevendo a sala de aula”, faremos uma narrativa de alguns momentos da aplicação da sequência didática no contexto da sala de aula. Contudo, a sequência didática apresentada na Aba Proposta Pedagógica já traz os incrementos resultantes da avaliação dos especialistas, de modo a disponibilizar uma versão mais refinada da nossa proposta.
Na narrativa, tecemos reflexões, apontamos desafios e destacamos a reação das/os estudantes às atividades realizadas durante a sequência didática, registradas em vídeo. Ao longo da narrativa, transcrevemos episódios de ensino, com trechos de interação entre as/os estudantes e a professora, que possibilitam compreender aspectos específicos da aplicação em sala de aula.
Na primeira aula, ao serem abordados discursos e práticas implicadas com o pensamento darwinista, que conduziram a processos de alterização negativa e racismo científico, foi gerado um debate sobre interseccionalidade. Nesse debate, foi argumentado como raça, gênero e classe estavam articulados nesses processos de alterização e racismo científico, voltados a determinados grupos, como mulheres negras e pobres. Apesar desse não ser um foco da nossa proposta, este debate indicou ser esse um momento propício para se discutir interseccionalidade (ver texto na aba fundamentos do MCE sobre Sarah Baartman).
Nesta aula, é importante ponderar também contribuições que derivaram do pensamento darwinista, especialmente, na resolução de problemas sociocientíficos, como, por exemplo, a importância das explicações da seleção natural para a compreensão da resistência bacteriana a antibióticos, a resistência de pragas agrícolas a inseticidas, e a explicação da manutenção do alelo S relacionados à doença falciforme em regiões de ocorrência da malária (esta explicação é detalhada na aula 4, mas é interessante citá-la aqui para conectar com a temática da sequência didática). Essa ponderação é fundamental para se alcançar uma crítica equilibrada da ciência, uma vez que, as implicações relacionadas a alterização negativa e ao racismo científico, pelo intenso sofrimento humano gerado, pode produzir discursos aversivos à ciência.
A segunda aula, prevista para durar 100 minutos, precisou de duas aulas (100 minutos cada), porque o projetor de slides não estava funcionando. O uso dos slides nessa aula era fundamental porque havia a previsão da atividade de análise das obras “A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos y Gomes, de 1895, e “Um Jantar Brasileiro”, de Jean Baptiste Debret, de 1827. Por isso, precisamos deslocar a programação da sequência didática uma aula para frente. Deste modo, a duração total da aplicação da sequência didática passaria de 6 para 7 aulas. Entretanto, considerando as limitações do cronograma da disciplina, precisamos excluir a última aula – Aula 6. Uma alternativa para a exposição de slides, é faze pranchas plastificadas com essas gravuras e distribuí-la entre grupos de estudantes, antes da discussão, solicitando que façam algumas observações sobre o que está exposto nas telas.
A atividade de análise de peças publicitárias atuais (Roteiro A), com base na leitura da comunicação “Sobre os mestiços no Brasil”, se constituiu em atividade rica em debates sobre a ideologia do branqueamento no contexto brasileiro e a relação dessa ideologia com questões raciais da atualidade. Essa atividade propiciou ampla interação entre as/os estudantes. Nesse momento, também observamos que alguns/mas estudantes identificaram alguns desses estereótipos em situações vivenciadas por elas/es mesmas/os no seu cotidiano. Na nossa experiência, sentimos que essa identificação gera situações delicadas, como a recordação de situações dolorosas de violência simbólica, as quais as/os professoras/es precisam estar atentas/os e buscar acolher essa/e estudante. Se de um lado, a consciência de que as situações de racismo, interseccionada com sexismo, é positiva para que estudantes as enfrente criticamente e de modo afirmativo, é positiva, ter contato com o discurso e imagem negativa dos naturalistas do século XIX e dos artistas plásticos das obras citadas, não deixa de ser uma experiência iterativa – ou seja reificada, repetida – de opressão, e portanto, dolorosa. É preciso, portanto, ter empatia e cuidado, com sentimentos que podem suscitar entre estudantes, em especial, em jovens negras e negros. Ouvir seus relatos, e buscar respeitá-los. Caso, você como professor/a tenha a mesma identidade étnico-racial e de gênero que o/a estudante que esteja contando sua experiência, poderá dividir experiências que também vivenciou. Caso contrário, poderá abrir e solicitar para alguém da turma, que tenha tido experiência semelhante, faça suas colocações, caso deseje.
Na quarta aula, o debate sobre a persistência do conceito de raça como marcador de identidade e construto social e/ou ferramenta política, com base nos textos do blog Darwinianas, e da análise dos banners com a charge de Laerte e com os dados sobre desigualdade racial, suscitou uma discussão importante sobre como opera o conceito de raça na sociedade atual, de modo conectado com a história do racismo científico e o processo de escravidão no Brasil. Analisando os dados estatísticos de um dos banners, a professora perguntou:
Professora: Por que que essas pessoas negras morrem mais?
Estudante A: Eu acho que a hierarquização ainda existe socialmente / acho não / tenho certeza / principalmente com essas estatísticas aí (a estudante gesticula indicando o banner).
Estudante B: Enfim / o conceito foi deslegitimado pela ciência / na ciência / mas / na sociedade as questões raciais / a hierarquização / essas coisas continuam existindo / e o racismo vem desde a estrutura da colonização e etc. e até hoje continua aqui.
Estudante C: Outra questão / trouxeram os negros da África e foram escravizados / e tipo / acabou a escravidão / mas / ficaram numa condição de…
Estudante B: De extrema vulnerabilidade.
Estudante C: Sem terras / sem nada / aí / foi um povo que foi largado sem suporte / sem nada e até hoje a gente sofre com isso.
Na quinta aula, a partir da leitura do Texto 1 (disponível na Aba Fundamentos), as/os estudantes apontaram algumas consequências do processo de racialização da doença falciforme para as pessoas acometidas pela doença, indicando um aspecto positivo do uso do texto pelos estudantes, como observado no trecho transcrito a seguir:
Estudante A: Acho que demorou-se muito para haver uma preocupação com essa doença pela questão de / desde o início / vê-la como uma doença de gente negra / digamos assim. Então acho que não houve uma preocupação de procurar fornecer uma qualidade de vida para essas pessoas / e é tanto que até hoje a gente vê / eu mesma / até na escola sempre falavam que a anemia falciforme é uma doença de gente negra / mas nunca falavam por que é de gente negra / tipo / é uma coisa que acaba sendo reproduzida / mas as pessoas não sabem nem justificar o que dizem / por que? Porque é uma questão histórica / e essa questão de / por atrelar a doença ao negro e a negra demorou-se / tipo / a preocupação com a saúde dessas pessoas.
Nessa aula também, ao abordarmos explicações evolutivas e históricas sobre a maior prevalência da Doença Falciforme em populações negras, as/os estudantes tiveram dificuldade de articular especificamente as explicações evolutivas para a manutenção do alelo S em de terminadas populações de modo adequado. Não observamos essa dificuldade em relação às explicações históricas para a entrada do alelo S no Brasil. Percebemos que a dificuldade esteve relacionada a compreensão do próprio mecanismo de seleção natural. Deste modo recomendamos que o mecanismo da seleção natural seja revisado nessa aula, ou antes dela. Ainda na quarta aula, a atividade de análise da abordagem de saúde sobre a anemia falciforme em livros didáticos (Roteiro D) gerou amplo debate na turma. As/os estudantes não tiveram dificuldade de identificar e caracterizar abordagens biomédicas da saúde nesses materiais, como observado a seguir:
Estudante A: É uma abordagem biomédica / porque só trata da biologia da doença / do teste do pezinho / da análise genética / só tá falando em como ocorre a doença / a biologia da doença
Contudo, a identificação das características da abordagem socioecológica da saúde foi mais desafiadora. As/os estudantes não fizeram referência explícita a abordagem socioecológica em suas análises. Recomendamos que seja feita uma discussão mais detida sobre essas abordagens de saúde, caracterizando cada uma delas com maior riqueza e identificando, especialmente na Cartilha “Doença Falciforme: o papel da escola” (ver Aba Proposta Pedagógica, no item recursos), as características de uma abordagem socioecológica. Na sexta aula, durante a discussão do processo de aconselhamento genético fornecido por um centro de doação de sangue para pessoas diagnosticadas com o traço falciforme durante os exames de pré doação (Roteiro E), observamos que as/os estudantes mobilizaram ideias importantes a respeito dos problemas relacionados ao aconselhamento genético mal conduzido. Os problemas levantados pelas/os estudantes se referem a aspectos éticos, discutidos tanto no Texto 1, como em sala de aula. A seguir, transcrevemos algumas dessas ideias das/os estudantes a partir da questão levantada pela professora:
Professora: Você considera que alguns princípios éticos que devem pautar o aconselhamento genético discutidos em sala / não foram observados no caso abordado no texto? Caso responsa sim / quais e por quê? (a professora lê a questão 1 da atividade do Roteiro E).
Estudante A: Sim / porque a garantia do sigilo médico foi nula.
(…)
Estudante B: Porque ele fala que um dos objetivos do aconselhamento de / nesse aconselhamento em grupo é em relação a reprodução / então / eu senti que ele meio que induz você a não querer ter filhos porque provavelmente vai nascer uma criança com a anemia falciforme.
Estudante C: Eu acho que é porque os resultados dos exames não vão / a pessoa tem que ir para o aconselhamento para receber o exame / a pessoa não vai por livre e espontânea vontade / então não tem a questão da autonomia.
Os episódios narrados acima, apesar de apontar desafios, apontam também aspectos positivos diversos da proposta de sequência didática que apresentamos nesse MCE. Especialmente, para o reconhecimento de aspectos históricos e políticos associados a racialização da doença falciforme; a relação da racialização com o racismo científico; os problemas implicados com o aconselhamento genético e o risco de novas formas de eugenia; e o reconhecimento de diversos significados atribuídos ao conceito de raça humana, que repercutiram e ainda repercutem nas relações étnico-raciais na sociedade brasileira, resultando em inúmeras desvantagens e privações de direitos por determinados grupos, como as iniquidades raciais em saúde.
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