Materiais Curriculares Educativos
DESCREVENDO A SALA DE AULA
A sequência didática descrita foi aplicada em duas turmas de terceiro ano do Ensino Médio (EM) integrado ao Técnico do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Campus Camaçari, sendo o desenvolvimento da investigação que gerou este MCE realizada em uma das turmas. As ações de ensino foram realizadas nesse ano escolar, pois buscamos incluir as atividades no cronograma e currículo escolar, já que, no contexto do IFBA, nesta série se estuda biologia celular. Foram realizados quatro encontros, um por semana, totalizando um mês de intervenção, em que cada encontro, considerado aqui como uma aula, teve duração de 100 minutos (1 hora e 40 minutos), totalizando 400 minutos (6 horas e 40 minutos).
A turma era composta por 28 estudantes, tendo a maioria idade entre 16 e 18 anos, sendo que 17 estudantes eram menores de idade e 11 maiores de idade. Ressaltamos a diferença percentual entre sexo feminino e masculino, sendo 35,71% e 64,29%, respectivamente. Embora a educação das relações étnico-raciais seja importante em qualquer contexto, já que se trata de uma abordagem formativa para todas as pessoas, a caracterização desse contexto institucional revelou um aspecto importante para a sequência didática desenvolvida, já que 80% das/os estudantes eram de perfil étnico-racial negro.
Ressaltamos que no contexto em que a sequência didática foi aplicada tínhamos o acesso ao uso de aparelho multimídia que possibilitou a exposição de vídeos e slides, com apresentações de figuras e esquemas para facilitar o aprendizado. Nesse contexto escolar, tivemos também a condição de disponibilizar cópias dos textos para serem trabalhados em sala de aula, como o caso da QSC, os textos de divulgação científica e os roteiros de análise. Ao reconhecer tais benefícios, entendemos que as/os docentes de diferentes instituições escolares do país podem fazer adaptações para aplicar a intervenção de ensino em seus contextos, adequando à disponibilidade de recursos. Ademais, a sequência didática pode sofrer adaptações visando atender aos objetivos educacionais que interessam ao/à docente.
Nos próximos parágrafos faremos uma narrativa dos momentos de ensino, apresentando as abordagens e os pontos positivos e desafiadores do processo. Em alguns momentos, iremos ilustrar nossas afirmações com episódios ou trechos de episódios de ensino e/ou trechos das falas de estudantes em reuniões de grupo focal que avaliou a sequência didática. Tais transcrições de interações foram feitas a partir de registro audiovisual das aulas.
MOMENTO 1: A HISTÓRIA DE HENRIETTA LACKS E MOBILIZAÇÃO PARA AÇÃO SOCIOPOLÍTICA
No primeiro momento fizemos a apresentação do caso da Questão Sociocientífica que orientou toda a nossa intervenção didática. A apresentação foi feita por meio da leitura do caso exposto em slides e entregue impresso às/aos estudantes. Após ouvir algumas impressões das/os estudantes quanto ao caso, apresentamos o vídeo sobre o caso de Henrietta e introduzimos as duas primeiras questões da QSC para promover discussão.
A abordagem promoveu o pensamento sobre a problemática da segregação racial e as questões envolvidas na ética em pesquisa, de modo que a apresentação da narrativa do caso foi oportuna, pois motivou as/os estudantes a pensar sobre a história de Henrietta Lacks, e o diálogo em torno das questões orientadoras promoveu pensamento sobre casos controversos que ocorrem no contexto local e na história do tempo presente. Podemos notar isto neste fragmento de um episódio de ensino:
Estudante A: Então/ esses casos assim de racismo/ eles são comuns até mesmo hoje em dia/ como por exemplo/ é/ nesse hospital/ as pessoas/ elas eram separadas por questão de cor/ então de um lado negros/ de outro brancos/ ((inaudível)) os brancos tem aquela coisa de que/ ah eu não vou me rebaixar ao ponto de ficar num mesmo local que um negro/ mas é bem comum que a gente vê várias notícias por aí de casos que acontecem em aviões/ que sempre tem aquela pessoa daquela classe e tem uma outra pessoa negra que senta do lado/ ou até mesmo no mesmo setor e aí começa aquela discriminação não só pelos passageiros/ como pelos próprios funcionários da companhia aérea/
Professora: Exatamente//
Estudante A: E/
Professora: E acontece ainda/ então/ né/
Estudante B: Sobre a segunda questão/ no caso/ é/ fala que/ usava/ não tinha consentimento das pessoas pra usar seus tecidos na/ em experimentos e etc/
Professora: Sim/
Estudante B: Era como se não considerasse essas pessoas como pessoas/ como se elas fossem animais praticamente/ que cê podia recolher lá o material/ não tava entendendo nada que tava acontecendo e não precisava explicar nada pra ela//
Professora: Nem sabia/ né/ que pegou/ Ela/ por exemplo/ nem sabia/
Ao abordar problemas de desconsideração moral da pessoa humana é comum, como em nossa experiência com esta sequência didática, que as/os estudantes façam uma comparação da humanidade com animais não-humanos. Reconhecemos que cometemos o equívoco de não trazer o debate sobre essa dimensão ética em sala de aula. Assim, recomendamos que, ao surgir esse tipo de discurso, sejam feitas discussões sobre a animalização de grupos humanos como estratégia que historicamente vem sendo utilizada para segregar e subjugar pessoas de um determinado grupo social e/ou étnico-racial. Esse aspecto poderia ter sido explorado de modo mais sistemático no processo de ensino, já que discutir questões éticas e políticas da desumanização de certos grupos humanos pode ser potencial para o reconhecimento de elementos opressivos que foram historicamente naturalizados por diferentes sistemas de dominação, que atuavam/atuam nos campos mentais, psicológicos e subjetivos de pessoas pertencentes a esses grupos, a exemplo da população negra e indígena.
Adicionalmente, é recomendável promover uma reflexão sobre a negação da consideração moral de animais não-humanos, pois quando a estudante menciona “como se elas fossem animais praticamente”, pode implicar numa ideia de que as pessoas estão autorizadas a utilizar corpos de animais não-humanos para pesquisas sem qualquer critério moral.
Ainda nesse primeiro encontro, abordamos sobre movimentos sociais, mencionando algumas conquistas históricas de lutas, a exemplo do movimento negro, com as cotas raciais, a lei 10.639/2003 e a criminalização do racismo. Foram abordadas ações sociopolíticas realizadas no contexto escolar em anos anteriores e, em seguida, foram expostos e discutidos vídeos do caso de Rosa Parks, para tratar sobre o fim das leis segregacionistas no contexto norte-americano, e do caso de Maria da Penha e da lei criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Esses exemplos de sucesso, tanto locais quanto nacionais ou internacionais, foram utilizados visando fomentar a confiança nas/os estudantes de que elas/os também podem se envolver em ações sociopolíticas e contribuir para transformações positivas na sociedade. Ao discutir sobre movimentos sociais e o movimento negro, fizemos uma distinção entre raça biológica e raça social, gerando uma discussão profícua sobre o conceito de raça, como podemos ver no trecho do seguinte episódio de ensino ( para discussão conceito de raça ver texto na aba de fundamentos do MCE de cotas):
Estudante A: Então/ é perigoso você dizer que socialmente não existe raça porque você nega o prerrogativo do racismo/ então quando você fala raça não existe então não existe o racismo ((muitas/os estudantes concordam positivamente com a cabeça))/ mas acontece que não é um conceito/ não é/ não é unânime entre as pessoas/ tem gente que acredita que raça biológica existe/ então por isso que você precisa desse conceito social pra discutir esses fenômenos que acontecem e tentar arrumar uma solução pra isso/ ((inaudível))
Professora: Perfeito/ muito bom/ isso mesmo/ então a raça/ é importante que se continue com esse conceito social e cultural como o Estudante A falou/ se não não existe/ se a gente pensar ah todo mundo é igual/ se todo mundo é igual não existe racismo/ mas é igual? Igual vocês falaram sobre o caso do avião/ não é igual/ existe preconceito/ existe racismo infelizmente ainda/ então o conceito ele é bastante importante/
MOMENTO 2: VISÃO CRÍTICA DAS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA, SOCIEDADE E AMBIENTE LIGADAS AO DESENVOLVIMENTO DO CÂNCER
O segundo momento da sequência didática foi organizado para uma aula expositiva dialogada sobre câncer e sua característica multifatorial. A sala foi dividida em cinco grupos de estudantes, em que cada grupo ficou responsável pela leitura, análise crítica e compartilhamento das respostas às questões envolvidas em um ou mais texto, de modo que cada texto abordou um fator socioambiental específico que se relaciona à incidência de câncer, sendo eles com as seguintes temáticas: consumo de agrotóxicos, obesidade, consumo de carne, estresse e HPV. Os textos foram entregues com os roteiros de discussão, em que continham algumas questões em comum (questões orientadoras do caso da QSC) e outras específicas sobre o fator de incidência do câncer. Para ilustrar, mostramos a seguir um fragmento de um episódio de ensino em que um grupo compartilha com toda a turma o texto lido sobre HPV e câncer.
Estudante A: é/ os nossos textos foram focados no HPV/ que é o papilo/
Professora: Papiloma vírus humano/
Estudante A: Isso/ então/ tipo/ é/ um dos textos ele foca na forma como esse vírus é passado de uma pessoa pra outra e tal/ e o outro texto puxa mais em relação ao gênero/ citando como exemplo Henrietta/ mas vamos por partes
Professora: certo/
Estudante A: então/ tem esse vírus/ e esse vírus ele pode ser contraído por outra pessoa de forma/ normalmente relacionado ao sexo/ né/ de forma manual/ manual/ genital genital e oral genital/ então/ certo/ quando a pessoa adquiriu esse vírus/ esse vírus tem o DNA dele e ele coloca o DNA no DNA da célula da pessoa e essa célula começa a produzir ((inaudível))// sim/ fala da relação desse vírus e o câncer/ tá/ o HPV ele tem várias cepas/ o HPV tem mais de cem cepas/ mas os que são relacionadas ao câncer são treze cepas/ entre esses o HPV ((pausa longa))
Professora: 16 e 18 ((referindo-se a tipos de HPV))
Estudante A: isso/ e Henrietta Lacks ela teve/ não lembro
Professora: penso que foi o 18
Estudante A: e com esse HPV ela acabou desenvolvendo o câncer do colo de útero/ então/ tipo/ ela tinha relações com o parceiro dela/ o esposo dela/ e ela começou a sentir dores/ porque uma das coisas que o HPV pode fazer são pequenos ferimentos/ certo/ lesões microscópicas/ e às vezes você pode ter HPV/ você pode até nem saber porque nem sempre ele vai se manifestar/ então num dos textos tem dizendo que/ pelo menos noventa por cento dos adultos que tem vida sexualmente ativa tem uma cepa do HPV
Professora: Exatamente
Estudante B: o artigo também falando sobre Henrietta que isso ((o fato de ela ter contraído o vírus)) era porque era uma mulher que se envolveu com vários homens/ alguma coisa assim/ e que na verdade era o marido dela que dormia com outras mulheres fora de casa e levou o vírus pra ela
Estudante C: E puxando esse assunto de gênero/ percebemos que durante um certo tempo/ é/ a mulher ela teve um papel um pouco mais pesado/ porque a mulher agora tem uma vida dupla/ ela cuida tanto da família quanto da vida/ do trabalho/ isso também facilita bastante/ porque ela vive uma rotina muito estressada/ e isso facilita bastante com que ela tenha problemas relacionados a esse tipo de coisa ((remete à propensão a desenvolver câncer))
É importante perceber que nessa abordagem dialógica de ensino e nesse episódio, especificamente, as articulações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente são explícitas. No episódio, o estudante indica que questões sociais – neste caso, a desigualdade de gênero, no tocante aos papéis sociais acumulados pela mulher e a carga de estresse que isso gera no corpo – podem ser potenciais para o desenvolvimento do câncer.
Ademais, destacamos duas vantagens educacionais importantes do uso dessa abordagem dialógica: 1) conseguimos explorar melhor o tempo escolar, que muitas vezes é restrito a esse tipo de discussão, pois foram discutidos diferentes fatores com algum nível de profundidade em apenas duas horas-aula; e 2) promovemos intensa circulação de ideias, já que as/os estudantes discutiram no grupo menor e ampliaram o debate com toda a turma, realizando intercâmbios de visões, aumentando o repertório de informações e desenvolvendo a habilidade de argumentação.
MOMENTO 3: ENSINO EXPLÍCITO DE ÉTICA E ALTERIZAÇÃO CIENTÍFICA PARA TOMADA DE POSIÇÃO ÉTICO-MORAL FRENTE AO CASO DA QSC
No terceiro momento, a sequência didática contou com o esforço do ensino sobre alterização científica e o ensino explícito de ética. Utilizamos o termo alterização para caracterizar os processos em que um grupo humano – social, étnico-racial, político – produz alteridades, ou seja, categoria de outros, normalmente pela criação de si próprio como padrão – de normalidade, de saúde, de beleza, de cultura e intelectualidade. Com base nessas categorias de “outros”, são produzidas e perpetuadas segregação, opressão e privação de benefícios a grupos sociais.
Explicitamos aspectos centrais acerca das três tradições em filosofia moral, por meio de duas estratégias bem demarcadas: 1) uma ideia geral sobre a ética, em que foram expostas suas principais características, bem como a distinção entre ética e moral, e 2) uso de exemplos, principalmente aqueles que são próximos à realidade das/os estudantes. Para ilustrar, destacamos um trecho de uma fala da professora num episódio de ensino:
Professora: “a deontológica ela faz/ ela é o inverso da consequencialista/ ela só pensa no que é o certo/ o começo/ ela não pensa nos fins/ por exemplo/ qual é a função do professor/ é vim/ dar aula/ e eu passar todo o assunto que ‘tá no livro e 16h50 eu abrir a porta e ir embora/ eu me importei se o aluno aprendeu? Eu não ‘tou nem aí/ qual é a minha função/ então ela ((ética deontológica)) obedece muito às leis que são postas/ a função/ o que é pra ser/ o que é pra ser é/ eu to fazendo o certo/ o que der ó não ‘tou nem aí ((expressão de pouco caso com as mãos))/ entende?”
Além da discussão explícita de ética, abordamos conceitos e exemplos de alterização, alterização negativa e alterização científica. Vejamos um exemplo de diálogo em sala de aula sobre esses temas:
Professora: a gente vai focar mais nessa coisa mais ruim/ certo? Na alterização que a gente chama de negativa/ e ai/ Qual seria mais especificamente os exemplos?
Estudante A: grupos trans/ grupos LGBT de maneira geral
Professora: Exato
Estudante A: minorias étnicas também
Professora: isso/ exatamente/ perfeito// que mais? Teria mais algum?
Estudante B: ciganos?
Professora: sim/
Estudante C: até a xenofobia por exemplo/ o nazismo/ aqui no Brasil/ por exemplo
Professora: os judeus né/ foram uma alterização/ na época
Estudante C: as religões de matriza africana
Estudante D: a questão da migração/ tipo que tá bem atual/ a xenofobia no caso/ dos mexicanos e tal
Professora: então isso que a gente acabou de ver né/ que seria o que a Estudante A falou/ racismo/ sexismo/ LGBTfobia/ opressão por extrato econômico/ e o próprio especismo//
Após esses debates, seguimos com a discussão sobre as relações entre ciência e ética. É importante destacar que a professora se colocou numa postura dialógica e que promoveu a participação das/os estudantes. Ilustramos com o seguinte trecho de um episódio de ensino:
Professora: então começando o debate/ a gente vai lançar algumas perguntas e gostaria que vocês fossem falando/ pode ir interrompendo/ pode ir falando// e a primeira seria se existe relação entre ciência/ entre o progresso da ciência e ética// O que vocês acham?
Várias/os estudantes: sim//
Professora: foi uma coisa que a outra turma falou/ sim/ essa é a resposta pra pergunta/ tchau/ ((estudantes riem))/ sim/ justifiquem
Estudante A: tipo/ é/ é só a gente ver o casos que a gente viu aqui na aula/ e até um que a gente viu no meu grupo/ de um caso que tem tipo um procedimento que eles vão tirar a cabeça de uma pessoa e botar na outra/ a gente tem que quando ver essas coisas parar pra pensar que tem muitas questões escondidas por trás disso/ ((inaudível)) e até a própria questão dos genes selecionados/ tipo você poder saber se a pessoa vai ter doenças ou não antes de ela nascer/
Professora: Abre precedentes/
Estudante A: isso/
Professora: pra uma escolha/ uma seleção
Estudante A: isso/ isso
((estudante levanta a mão))
Estudante B: Na verdade/ eu vejo essa pergunta de outra forma/ eu vejo qual seria o preço do progresso/ e aí eu encontro a ética como valor a ser pago pelo progresso/
Professora: explica um pouco melhor/ qual que tu acha que é o valor do progresso?
Estudante B: A ética/ por exemplo/ a maioria das coisas que nós temos hoje de tecnologia avançada o preço dela foi a guerra e a guerra como todo mundo sabe é a morte de muitas pessoas/ então no momento que você/ no contexto daquele/ mesmo você avançando/ sua ética/ normalmente você mata uma pessoa/ uma vida ali/ então ta se pagando pela/ então eu acho que o valor do progresso e a ética/
A nossa abordagem das três distintas teorias morais foi realizada com intuito de que estas fossem acionadas pelas/os estudantes ao discutir sobre a problemática sociocientífica em análise e as demais situações controversas emergentes que surgiam nos debates. A experiência com essa sequência didática nos fez concluir que precisaríamos de mais tempo para maior aprofundamento nas teorias morais, já que tivemos atividades de posicionamento com algumas distorções conceituais. Além disso, a distinção entre ética e moral foi insuficiente, gerando certas incompreensões por parte das/os estudantes. Porém, consideramos que essa abordagem gerou reflexões e análises críticas sobre o caso, além de extrapolação para casos do cotidiano. O uso dos exemplos e do caso concreto perpassando toda a sequência didática foi potencial para gerar as análises. O recorte de um diálogo com estudantes em uma reunião de grupo focal para avaliar a sequência didática evidencia nossa interpretação:
Estudante I: A gente estudou sobre ética/ mas a gente viu na disciplina de filosofia/ ((inaudível)) Quando a gente vai falar disso no contexto filosófico/ é muito complexo inclusive pra você entender/ mas quando vai relacionar isso com/ não sei dizer se é porque tava na aula de biologia/ ou a forma como foi mostrado aqui/ ficou muito mais claro/ mais didático/ pra entender/ Porque se a gente for só focar na questão dos conceitos de ética e de moral/ a gente não consegue entender muita coisa/ Mas quando relaciona com algum caso/ como o caso de Henrietta/ com as discussões que a gente vem tendo/ acho que é mais fácil de entender.
Estudante A: É porque/ tipo/ como o Estudante H veio falando/ os filósofos e as pessoas que pensam as coisas e etc/ eles falam/ mas eles falam normalmente pensando em alguma coisa que tem na mente deles/ então a gente não consegue saber o que tem na mente deles/ entende? A gente não consegue visualizar a situação exata da qual aquele cara tava pensando pra poder relacionar a situação como que ele disse/ e aí entender a coisa/ Só que quando a gente tem uma situação concreta de coisas que aconteceram e uma ideia/ dá pra a gente relacionar as duas e a partir daí entender/
MOMENTO 4: COMPARTILHAMENTO DE AÇÕES SOCIOPOLÍTICAS ELABORADAS
Em todos os encontros realizamos orientações sobre a elaboração das ações sociopolíticas e, no momento 4, que destacaremos a partir de agora, as/os estudantes compartilharam suas propostas com toda a turma. Para avaliar as propostas de intervenção utilizamos alguns critérios, são eles: 1) Introdução fundamentada em conceitos e dados relacionados à temática sobre a qual se propõe agir; 2) Justificativa do ponto de vista social, científico, ético, político e ambiental; 3) Relação evidente com questões de alterização negativas presentes na sociedade atual; 4) Compromisso com a promoção de mudança de valores, discursos e práticas que geram alterização negativa; 5) Exequibilidade, em condições sociais, econômicas e contextuais das/os proponentes; e 6) Descrição compreensível e detalhada de aspectos metodológicos relacionados à ação.
Tivemos um resultado razoável na avaliação das propostas, sendo que alguns aspectos importantes precisam ser considerados para a aplicação de intervenções que visem o desenvolvimento de ações sociopolíticas: 1) é importante, na formação para ação sociopolítica, solicitar que as/os estudantes contem possíveis casos e/ou problemáticas que elas/os e/ou a comunidade em que vivem enfrentam e aprofundem a compreensão dessas problemáticas, para, a partir disso, orientar e preparar para o processo de planejamento da ação, sem correr riscos da elaboração de ações completamente desvinculadas da realidade local e sem possibilidade real de execução; 2) é necessário maior tempo para debate sobre a elaboração de ações dessa natureza, estimulando fortemente a participação das/os estudantes no processo dialógico e evitando confusões entre desenvolvimento de ações sociopolíticas com Movimentos Sociais, já que na reunião de grupo focal as/os estudantes consideraram que alguns grupos entenderam a ação sociopolítica como algo muito maior e difícil de ser executada pontualmente, vinculando-a a Movimentos Sociais; e 3) é importante levar em consideração a noção de pertencimento das/os estudantes para que as ações tenham sentido em suas vidas. A conversa entre as/os estudantes na reunião de grupo focal evidencia essas afirmações:
Estudante A: A culminância da sequência ser uma ação sociopolítica nos deixa mais assim inseridos nesse contexto de ação mesmo/ de pegar o que a gente viu/ pegar o que a gente estudou ali e por em prática na sociedade/
Estudante C: A gente pensa na questão dos moradores de rua/ só que a gente trabalha mais assim com o que aparece mais na comunidade/ na questão das oportunidades que a gente teve de fazer ação/
[…]
Estudante B: Eu acho que pra garantir que as ações sociopolíticas fossem desenvolvidas/ eu acho que deveria deixar claro que são coisas possíveis/ porque o que a gente viu aqui foram coisas muito utópicas/
Pesquisadora: Nós não deixamos claro?
Estudante D: Pela apresentação das pessoas eu acho que não/
Pesquisadora: Mas/ o que vocês acham?
Estudante A: Pra mim tava claro o que deveria fazer/
Estudante B: É porque ação sociopolítica é uma coisa muito ampla/ às vezes você imagina que é uma coisa gigante/
Estudante A: Mas/ eu acho que ficou claro que era uma coisa que a gente realmente poderia fazer/
((conversas misturadas))
Estudante H: O Estudante I até deu a ideia de/ tipo/ aproveitar o momento conturbado politicamente que o Brasil ‘tá e tentar criar/ tipo/ né criar/ é reacender aqui no campus/ rodas de conversas/ porque quando a gente entrou aqui/ no primeiro ano/ sempre tinha assim/ assembleias e o pessoal chamava pra discutir e tal/ e com o passar dos anos isso foi morrendo/
Estudante A: Ele foi assassinado/
((conversas sobre movimento estudantil na escola))
Estudante C: Eu acho que essa questão da ação sociopolítica possível também passa pelo pertencimento ((inaudível)) a pessoa que quer fazer por fazer/ vai lá/ não que seja algo geral/ mas tem pessoas que faz atividade por fazer/ mas a questão do pertencimento é importante/
Alguns aspectos relevantes do ensino que foram potenciais para promover as capacidades de proposição de ação sociopolítica são: 1) utilização de tipos de ações sociopolíticas baseadas na perspectiva de Reis (2013) ; 2) abordagem de exemplos de ações locais – do contexto escolar, nacionais e internacionais que foram e/ou são bem sucedidos e que estão ligados a posturas de denúncia e ação contra situações de alterização negativa; 3) detalhamento sobre os procedimentos da proposição de ações que as/os estudantes se envolverão; e 4) adoção da perspectiva radical freireana da educação científica, em que o processo dialógico sobre QSC foi realizado de modo comprometido com a proposição das ações sociopolíticas. A definição e o aprofundamento da compreensão do caso/problemática podem ser feitos pela Investigação Temática, conforme proposto por Paulo Freire. Para saber mais sobre isso sugerimos a leitura do artigo “O Levantamento Preliminar na seleção de Questões Sociocientíficas: o exemplo do areial em Olivença/BA”. (https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/21011).
Por fim, apresentamos o relato da professora que aplicou a sequencia didática, com seus comentários sobre o que significou para ela profissionalmente e com dicas para os colegas que queiram trabalhar com a proposta:
“A experiência com esta sequência didática (SD) foi muito importante e interessante para minha trajetória docente. Foi muito empolgante e prazeroso estudar, ensinar e participar desta SD tão rica e estimulante. Os alunos participaram bastante das aulas e diálogos, gerando muitas discussões interessantes. O fato de trazer para a sala de aula de Biologia assuntos mais gerais e fora do espectro somente biológico fez com que estimulasse mais os alunos, pois envolveu a biologia com outras temáticas, normalmente não abordadas.
Os aspectos desafiantes da SD na minha visão foram dois, a ética e as ações sociopolíticas. A respeito da ética, que foi um conteúdo ministrado em sala de aula, foi um obstáculo a ser vencido por mim, pois tive que estudar, aprender e ensinar um conteúdo com o qual não estou acostumada e familiarizada. Este conteúdo não faz parte da minha prática docente especificamente e nem fez parte da minha formação docente. Assim, destaco este aspecto como sendo muito desafiador. O outro aspecto foi ensinar as/os estudantes o que é ação sociopolítica e que elas/es desenvolvessem, em grupos, essas ações. Isso não faz parte da rotina das/os estudantes, foi algo novo a elas/es e, com isso, mais difícil delas/es entenderem e ainda mais desenvolverem. Desta forma, os trabalhos avaliativos em que elas/es desenvolveram ações sociopolíticas, ficaram, em geral menos elaborados do que esperado por nós que aplicamos a SD.
Os pontos positivos da SD foram dois, câncer e assuntos fora do espectro de biologia. O primeiro foi muito interessante incluir o câncer como contextualização e relação com a mitose, assunto de biologia que fazia parte da SD, pois é um assunto de interesse dos estudantes e faz com que a mitose fique mais palpável e entendível. O segundo ponto foi relacionar com o caso que aplicamos assuntos que não são de Biologia, mas de um espectro maior, tais como conteúdos sociais, éticos e culturais. Estes assuntos geraram discussões e muita empolgação pelos estudantes, ficando, assim, as aulas mais dinâmicas e dialógicas.”
Aos/Às professores/as que forem aplicar esta SD em suas salas de aulas, aconselhamos a dar mais atenção ao desenvolvimento do trabalho das ações sociopolíticas, ir ao longo da SD perguntando e ajudando os/as estudantes com este desenvolvimento, pois foi algo que tiveram dificuldade.