Materiais Curriculares Educativos
DESCREVENDO A SALA DE AULA
O desenho dessa sequência levou em conta aspectos de um contexto escolar específico. A aplicação da sequência desenvolvida ocorreu no ano de 2015 numa escola estadual de Feira de Santana em duas turmas de 2º ano do ensino médio. A escola é classificada como de pequeno porte, e conta com oito salas, das quais quatro tem capacidade de quarenta estudantes e as outras quatro tem capacidade de trinta estudantes. As duas turmas envolvidas na aplicação tinham a capacidade menor. As turmas tinham um perfil distinto: a de faixa etária menor, entre 16 e 17 anos, tinha um histórico de notas mais altas e eram considerados mais “interessados” pelos professores, eles tinham uma bagagem conceitual maior, e por isso, acompanhavam melhor os conteúdos conceituais. Em contrapartida, a outra turma, com estudantes com idade entre 16 a 20, tinha um engajamento mais participativo em discussões em sala de aula, até mesmo pela maior vivência e experiências em alguns aspectos relacionados à sequência.
Contexto pedagógico de Aplicação
A escolha pelo conteúdo conceitual de evolução se deu por questões curriculares associados ao contexto, outra demanda considerada no desenho da sequência foi a efetivação do projeto “Consciência Negra na escola”, por isso optamos por articular as questões de gênero e raça, assim como de alinharmos a sequência de modo que seu momento de culminância coincidisse com a culminância do referido projeto. O contexto do ensino de evolução forneceu alguns subsídios teóricos importantes para a efetivação de alguns aspectos da sequência, entretanto, é importante ressaltar que o foco da sequência não foi o ensino das teorias evolutivas, consideradas importantes para o entendimento do conteúdo principal, que foram os processos de alterização científica relacionados a gênero e raça.
A existência de um projeto institucional na comunidade escolar, pautado na discussão das relações étnico-raciais (Projeto Consciência Negra), foi um aspecto pedagógico importante, visto que no momento em que a sequência foi efetivada, toda a comunidade tratava temas dessa natureza, criando uma esfera colaborativa e transdisciplinar, mesmo que os moldes de organização pedagógica seguissem o padrão disciplinar foram possíveis algumas interlocuções.
Outra característica pedagógica importante foi a parceria estabelecida com a professora de história. Apesar da dificuldade de encontrar momentos comuns para o planejamento das atividades, conseguimos manter um diálogo que favoreceu a interdisciplinaridade entre as disciplinas de biologia e história.
Êxito 1
O uso do caso Sarah Baartman
O primeiro acerto foi a escolha do caso, sem dúvidas a história de Sarah Baartman desperta, quase que instantaneamente, interesse seja por curiosidade, seja por empatia. O fato de ser um caso real, de ser uma mulher negra, identidade predominante entre as estudantes da escola pública, os aproximam demais à proposta pedagógica.
O uso de trechos de filme
Explorar o caso por meio de um recurso audiovisual também foi apontado pelos próprios estudantes, e pela colega de história, como um fator facilitador e exitoso da sequência. Na sequência desenhada optamos por passar trechos do filme, devido ao tempo de aula que geralmente impossibilita assistir vídeos muito longos e discuti-los no mesmo momento. Nas falas dos estudantes e da outra professora envolvida na sequência, o caso da Sarah Baartman explorado por meio de trechos do filme foi considerado mais prático e chocante, como podemos observar nas falas abaixo:
“[…] então eu acho que o exemplo é bem significativo pra gente trabalhar com essa mentalidade né/ de como a ciência/você que trabalha com a coisa da ciência/como a ciência ela tá ligada a história né/ao tempo que se vive/ então a ciência naquela época ela estava a serviço/ desse preconceito/dessa exclusão”
“Eu acho que foram fundamentais né/é como eu disse nesse instante/o visualizar/o você sentir/como aquela pessoa foi tratada/como isso era recebido pela sociedade […]”
“[…] então assim/ acho que as imagens/elas/elas são /bem interessantes/ é diferente de você ler/ um texto né/ porque o texto ele pode estar carregado assim/ de preconceito mas você não sente/ e com as imagens/ não é possível que você não se sensibilize com aquilo/então eu achei bem interessante o uso do filme […]”
(falas de Juliana: professora de história envolvida na aplicação da sequência)
“[…]quando trouxe esse caso da Sarah Baartman/ a gente conseguiu entender o preconceito de uma forma mais intensa/ por que a gente percebeu que o preconceito surge desde a civilização/ então os negros sempre foram vistos como inferiores/ como uma raça que tinha de ser submissa/precisando dos brancos é…/ para civilizar os negros/ então é um preconceito que precisa ser desconstruído, mas como isso…/ a gente pegou esse caso da Sarah Baartman e tentou passar para as pessoas da minha sala/ a gente tentou passar para as pessoas como o negro se sentia […]” (Relato de Renata)
“[…]Ele expôs ela trancada numa jaula/ e os homens podendo tocá-la/ então ele pode pensar assim/ que mulher não tem valor…/ a negra/ a mulher mulata/ ela tem esse corpo/ esse aspecto/ esse físico dela/você pode tocar o momento que você quiser/você pode ver porque…/ não tem valor […]” (Relato de Renata)
“Eu acho muito mais importante a gente saber assim/ do caso/ mesmo sendo trágico/ porque eu acho que a gente teve mais motivação pra…/ elaborar a apresentação/ porque se fosse só uma pessoa/ que chegasse aqui e lesse/ nem todo mundo vai gostar de querer ler uma coisa que é entregue a ela/ ou… é muito mais prático você assistir/ entender/ eu acho que foi muito mais prático pra gente.” (Relato de Mariana) (falas de estudantes que participaram da aplicação da sequência)
Desafio 1
Ainda que o uso do filme tenha sido apontado como fator facilitador, vivenciamos momentos desafiadores durante sua exibição, pelos mesmos motivos relatados como exitosos: as cenas chocam! E evocam experiências de preconceito e opressão próximas com as vividas pelas estudantes. Como resultado, algumas estudantes negras ficaram muito comovidas. Acho importante o(a) professora envolvido(a) na mediação da exibição do filme tenha um olhar empático para conseguir lidar com as manifestações de desconforto, inclusive, a exibição das cenas pode ser precedida por um momento de preparação.
Êxito 2
Projeto Consciência Negra: contexto pedagógico favorável
O Projeto Consciência Negra era um dos projetos institucionais da escola, e era trabalhado ao longo de um dos ciclos (o tempo escolar era organizado em 3 ciclos, desta forma, em 1/3 do ano letivo a comunidade escolar de dedicava a este projeto). Enquanto participante daquela comunidade, eu pude observar o interesse dos estudantes por esse projeto. Ao longo dos anos, esse projeto foi ganhando mais notoriedade e os estudantes foram entendendo a importância do mesmo e construindo modelos de identidades negras mais positivas, se vendo enquanto protagonistas nesses projetos.
Em relação a importância do contexto para o sucesso da sequência didática, a estudante Juliana apontou que:
“[…]então assim a escola/ /talvez de uns cinco anos pra cá/eu acho que a comunidade escolar tem se envolvido assim/ nos projetos né/ a gente tem buscado melhorar esses projetos/o envolvimento com toda a escola/então assim/essa conjuntura favorece/o que não quer dizer que só possa acontecer aqui não é/então depende da forma como o recurso seja trabalhado/da habilidade né/porque… é… o interesse do aluno a partir do momento que ele é despertado né/e se você vai alimentando isso/ com certeza ele vai longe não é […]”
Como apontado pela professora de História, apesar da importância do contexto e do envolvimento da comunidade escolar num projeto mais amplo, a sequência didática é uma proposta educacional possível de ser aplicação em outros contextos, sendo que sua implementação depende muito das(os) docente(s) envolvidas (os), e de sua habilidade em despertar o interesse das(os) estudantes. No caso da comunidade em que foi desenvolvida e aplicada, esse interesse foi despertado o que resultou em uma aprendizagem efetiva:
“[…]então assim/ eu acho que cumpriu uma função muito legal/ de tirar os meninos assim do senso comum/e principalmente/ de despertar neles o interesse de aprofundar a questão/ de ir além/ isso é sempre bom […]”
“[…]porque não foi uma coisa puxada só pelos professores/conseguiu atrai-los e envolvê-los pra essa…/ pra esse aprofundamento da temática né […]”
Êxito 3
Construção de uma visão equilibrada de ciências
Durante o desenvolvimento da sequência, ocorreram várias discussões sobre a natureza e história das ciências. As relações sobre o passado e o presente também foram bastante exploradas. Podemos observar que as(os) estudantes expuseram uma visão crítica da ciência, atrelada a um contexto histórico. Nas falas que se seguem, além desses aspectos, fica explicito também o reconhecimento dos interesses que estão envolvidos na produção da ciência.
“[…]e isso também nos traz um outro ponto/porque de forma geral assim/que se foi a ciência manipulada de certa forma que fez isso/há… séculos atrás/talvez seja dever da ciência hoje/também desmentir/tentar trazer essas questões[…]” (Relato de Carlos)
“Eu penso assim/ eles estavam em uma época de civilização/ que estavam em muito conflito territorial/eles queriam o que?/ novas descobertas/então eles queriam o quê?/ vamos nos apossar de terras/e através de quem?/ do negro/ vamos torna-los inferiores/ então eles tornaram a ciência que era algo de poder/ e pegaram…/ isso é…/ pra influenciar as pessoas/e conseguir de fato/ torna-los mais poderosos/e aí hoje eles tentam desconstruir isso […]”
“[…]A ciência ela influencia pro bem/ mas quando ela quer influenciar pro mal/ ela tem total poder também…/ é um jogo[…]” (Relato de Renata)
“Isso prova que tudo que a ciência fala a gente acata/se a gente ficasse nessa visão/ a ciência fala uma coisa/ questão de remédio […] Mudou assim/ que nem tudo que a ciência fala…/eu digo assim/ eu…/ acredito[…] (Relato de Antônio)
“A ciência nada mais é do que uma ferramenta/ uma ferramenta que pode ser usada tanto para o bem ou para o mal/ e equivalente a quando ela é usada para o bem ou para o mal/ isso depende da quantidade de pessoas que estão envolvidas/ do século XIX para o século XXI que é o que nós estamos/ é a quantidade de pessoas envolvidas/ entendendo o que é ciência/ trabalhando com a ciência […]” (Relato de Carlos)
Desafio 2
Mediação adequada aos perfis das turmas
Na turma que apresentava faixa etária maior foi observada uma dificuldade maior na atenção e compreensão dos aspectos mais importantes dos textos trabalhados, o que dispersava a discussão em alguns momentos. Para que os objetivos educacionais propostos fossem alcançados, foi preciso que a professora assumisse um papel mais sistemático na mediação das discussões, com uma frequência maior de interferências para direcionar o debate para os temas de interesse da proposta educacional, ação docente que surtiu o efeito desejado, não havendo problemas na continuidade da sequência.
Desafio 3
Entendimento de uma perspectiva interseccional
Inicialmente, apostamos que o estudo do caso de Sarah Baartman, atrelado à abordagem de debates atuais sobre questões de gênero e raça, possibilitaria uma visão mais ampla das opressões, no que tange a intersecção das mesmas no âmbito sociocultural. Entretanto, observamos durante a aplicação da sequência que a perspectiva interseccional não foi muito enfatizada, mas foi mobilizada, como podemos observar nas falas de alguns estudantes, nos trechos abaixo:
“[…]A mulher também é vista hoje pelo físico dela não é? Que a mulher negra hoje é vista pelo físico é atraente pelo físico/ e o que atrai na mulher negra na visão dos homens brancos é o sexo[…]
[…] A mulher branca/ por mais que ela sofra também com o machismo/ ela ainda tem mais oportunidades do que as mulheres negras[…]” (Relato de Renata)
“[…]Os brancos eles sempre foram valorizados/ mesmo que Sarah Baartman lá/ fosse negra e…/a visão dela fosse totalmente distorcida/ a mulher ainda…/além de diminuir o valor da mulher/principalmente negra/ a mulher branca/ ela sempre tinha um pouco mais[…]” (Relato de Antônio)
De um modo geral, percebemos que os estudantes interpretaram o caso, e se apropriaram de discussões, a partir mais frequentemente e centralmente pela categoria raça do que pela categoria gênero. O foco na questão racial pode ter ocorrido pelo contexto de aplicação da sequência didática, ligada ao projeto “Consciência Negra” na escola. Por isso as ações descritas na sequência enfatizaram no caso de Sarah Baartman muito mais o fato dela ser negra. Mas a objetificação do corpo de Sarah também chamou atenção das(os) estudantes para as questões de gênero. Um indício desse resultado, fora as associações que as(os) estudantes fizeram das cenas do filme com contextos atuais de subjugação da mulher negra, interseccionando gênero e raça.