Materiais Curriculares Educativos

DESCREVENDO A SALA DE AULA

A proposta descrita foi aplicada em uma sala de aula do terceiro ano do ensino médio de biologia de uma escola pública de Feira de Santana (BA), organizada na forma de uma sequência didática em cinco aulas de 50 minutos. A turma era formada em quase sua totalidade de estudantes negros, em sua maioria por mulheres entre 17 a 19 anos. 

Faremos uma narrativa de como a aplicação transcorreu nessa sala de aula, de modo a apresentar alguns desafios enfrentados, reflexões que fizemos sobre as atividades e recursos utilizados, reações que os estudantes tiveram em relação aos debates propostos e aos conteúdos apresentados. Em alguns momentos traremos alguns episódios de ensino, trechos de transcrição de interações entre professoras e estudantes e estudantes entre si, feitos a partir de registro audiovisual das aulas. 

Em relação a primeira aula, observamos que o documentário “Raça Humana” têm grande potencial para engajar os estudantes no debate sobre questões relativos a: a) definição de cotas raciais e políticas afirmativas; b) categoria racial como critério de acesso em universidades; c) mestiçagem e identidade negra; d) meritocracia e) concepção de igualdade.  Em nosso caso, para ocupar menor tempo de aula foi feita uma edição para que sua exibição durasse em torno de 20 minutos.

A partir dele é possível e desejável fazermos um exame da natureza dos argumentos favoráveis e contrários as cotas, chamando-se atenção para os diferentes significados atribuídos à raça e o conhecimento da genética utilizados nos argumentos. Neste momento o/a professor/a também encontra oportunidade para abordar os conceitos de fenótipo e genótipo, identificando-os nos argumentos sobre raça e cotas raciais apresentados no vídeo.

Nessa aula foi possível conhecermos qual é a visão que os estudantes tinham sobre as cotas e como se posicionavam em relação aos argumentos favoráveis e contrários mais frequentemente colocados nos debates sociais a respeito.

Na nossa experiência os/as estudantes, no geral, apresentaram uma posição ambígua. De um modo geral, reconhecem que as cotas raciais constituíram um avanço perceptível e importante na vida da população negra. No entanto, parte dos/das estudantes, a priori, não concordavam com o critério racial como parâmetro de acesso em universidades. Os argumentos que apresentavam demonstram a importância de contribuirmos no ensino de ciências para uma visão mais informada e crítica sobre a origem histórica do conceito de raça e seus diferentes significados e usos sócias, como nos propomos a discutir no texto 1 da sessão de fundamentos desse MCE. Os estudantes apresentaram as seguintes razões para desconcordarem do uso do conceito de raça como parâmetro para benefício às cotas para acesso em universidades: (1) concebem que a categoria raça traz consigo um caráter pejorativo e discriminatório, com o qual não querem ser identificados; (2) seu uso também estaria estimulando uma forma de segregação racial na sociedade; (3) consideram inviável classificar as pessoas racialmente, por circunstância do processo de miscigenação.

A primeira razão nos aponta também para a importância de construirmos uma identidade e pertencimento étnico-racial positivo. Um dos objetivos centrais da educação das relações étnico-raciais e, certamente, bastante desafiadora, em uma sociedade que o racismo é estrutural, ao tempo em que ambíguo e velado pelo mito da democracia racial e pela ideologia do embranquecimento. Um dos investimentos é fazer atividade que possam aumentar um sentimento de pertencimento étnico-racial positivo entre estudantes negros e negras e reconhecimento e valorização da história dos afrodescendentes no Brasil, entre todos estudantes. Foi o que buscamos fazer no quarto momento da sequência, que comentaremos adiante. Outro passo importante é o exame de como estereótipos negativos foram construídos historicamente, a partir inclusive do racismo científico, e no mesmo processo, a ideologia do embranquecimento foi construído. E por essa razão, é sempre um bom investimento destinar uma aula para discutir conceito de raça. 

A discussão sobre conceito de raça também é um caminho para examinar mais criticamente a questão de não ser possível classificar as pessoas racialmente em um contexto de miscigenação, ao apresentarmos os debates entre conceito biológico e conceito social de raças. Uma síntese desse debate é apresentada no texto 1 da sessão de fundamentos. Em relação ao argumento 2, uma discussão sobre o caráter estrutural do racismo no Brasil, e um exame crítico dos discursos sobre racismos às avessas, podem ser importantes.

Para apoiar o/a docente a lidar com os desafios, além dos textos 1 e 2 da sessão de fundamentos desses MCE, recomendamos também a leitura de quatro textos: 1) a entrevista de Kabengele Munanga intitulada A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil, que aborda questões de identidade negra no Brasil (https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100005) ; 2) texto de Maria Aparecida Silva Bento intitulado Branquitude e poder – a questão das cotas para negros, no qual a autora faz um exame dos discursos pró e contra as cotas raciais para negros e negras(http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000082005000100005&script=sci_arttext)  3) texto de Livia Maria Santana e Sant’Anna Vaz intitulado As comissões de verificação e o direito à (dever de) proteção contra a falsidade de autodeclarações raciais, (https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2019/03/Heteroidentificacao_livro_ed1-2018.pdf)  nos quais são discutidas questões relacionadas a identidade nacional, constitucionalidade das cotas raciais e as falsas autodeclaração raciais que visam burlar esta política; e 4) artigo da autora Nilma Lino Gomes intitulado a Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas, que discute os significados de igualdade e equidade na perspectiva do Movimento Negro Brasileiro (https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19971).

O segundo e o terceiro momentos da sequência foram destinados à discussão sobre o conceito de raça, a história de seu desenvolvimento e de seus usos sociais. No nosso caso, essa discussão foi realizada a partir da leitura e discussão de dois textos publicados no blog darwinianas, ambos de autoria do geneticista Diogo Meyer, tal como indicado na descrição da proposta pedagógica – para discutirmos as controvérsias sobre o conceito de raça internas à Biologia – e o exame de charges e a discussão de vídeos que tratam da desigualdade social e sua relação com a categoria raça – para discutir a noção de raça como construto social ou o conceito social de raça. Consideramos que é importante: (1) enfatizar o caráter controverso e não unanime da “inexistência de raças” mesmo internamente nas ciências biológicas e  biomédicas (2) enfatizar fragmentos do texto que mencionam o conceito de raça como uma construção social relacionando os dados de desigualdade racial no Brasil; (3) relativizar o argumento da inexistência da raça proposta pela genética contemporânea quando este implica a negação de direitos a população negra, em especial referente ao acesso em universidades públicas pela via das políticas afirmativas.

A exposição do banner com a charge de Laerte e com os dados sobre desigualdade racial, quando discutidos com argumentos presentes no texto a respeito da existência das raças como construção social e não como realidade natural, gerou bons resultados em fomentar debate em sala sobre o caráter estrutural do racismo no Brasil, como podemos ver nesses trechos de episódios de ensino:

1.Professora: Fale Estudante 4, pra gente ouvir/ Fale/

  1. ((Estudante nega a falar neste momento))
  2. Estudante 3: Não vou consegui falar não/eu não consigo argumentar pra falar /Está pedindo/olha/ pra sociedade a pessoa negra que passa na rua é considerado como ladrão/então os policiais/quando passam/ vê um neguinho ali/é a primeira pessoa eles vê/sabe/

(…)

  1. Professora: E vocês conseguem identificar a inexistência de pessoas negras em alguns setores sociais? Elas estão em todos os lugares?
  2. Estudante 5: Eu acho difícil
  3. Professor: Em que lugares você acha que é difícil?

Estudante 4: Empresas

No entanto, o trabalho com o vídeo de depoimentos de parentes e pessoas próximas aos jovens que foram vítimas da Chacina do Cabula, com objetivo de educar ara “nunca mais”, nos mostrou que, embora os estudantes reconheçam o caso como um exemplo de violação de direitos humanos, relacionados às relações raciais, é preciso estarmos mais atentos(as)  às visões estereotipadas da relação entre o corpo negro e a criminalidade, e a demanda de investirmos em sua desconstrução, ou ao menos, problematização.  Essa necessidade nos é apresentada na ponderação feita por um estudante, em sua análise de quais elementos seriam necessários para avaliarmos se a chacina é consequência (exclusivamente) do racismo:

1.Estudante 8: Todos que morreram foram negros?

2.Professora: Sim/ Basicamente sim/

3. Estudante 8: Se todos eram negros/ Eu acho que/ isso tudo que acontece aí/ não nesse caso aí/ já que todos morreram eram negros/pode sim que foi por causa/ do racismo/e dessa idéia de raça/ mas eu acho que muitas vezes essas mortes em favelas acontecem/também por causa do preconceito social/ porque as pessoas já tem na cabeça de que quem mora na favela é ladrão/então os policiais de hoje em dia/ não estão/ tão bem preparados/ e chegam lá ((parte inaudível))/ e muitas das vezes/ eu vejo comentar/ ah morreu apenas por ser negro e não tinha envolvimento com o/tráfico/ a gente nunca ouve/ quando é um caso de homicídio os parentes relatando/ ah tinha o envolvimento com o tráfico/era um traficante mesmo perigoso/a gente nunca vê isso/então eu acho que as coisas precisam ser relacionadas/ nesse caso não ((referindo-se ao caso exposto no vídeo))/ Se é um caso de preconceito ou não/tem que ter bem/ de qual lugar que estava/

Para dar conta dessa questão, é recomendável discutir a prática de legitimarmos ou naturalizamos medidas de Estado em que se vinculam mecanismos de punição e extermínio como um dispositivo fundamental para o funcionamento de sociedades excludentes; assim como, e problematizar a associação de estereótipos de criminosos , como “ladrão” e “traficante”,  aos “corpos negros não humanos”, pois está visão pode dificultar a compreensão de que casos de genocídio e violência policial envolvendo jovens negros/as podem estar associados a motivações racistas.

Para apoiar os professores nessa discussão pode ser útil a leitura dos textos: AHMED, A. Kayum. Direitos humanos e o corpo negro não humano. Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos – v.15 n.28, p.119 – 126, 2018 (https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2019/05/sur-28-portugues-a-kayum-ahmed.pdf) ; VIANNA, Priscila; NEVES, Claudia. Dispositivos de repressão e varejo do tráfico de drogas: reflexões acerca do Racismo de Estado. Estudos de Psicologia, 16(1), 31-38, 2011 (https://www.scielo.br/pdf/epsic/v16n1/a05v16n1.pdf) .

O quarto momento foi destinado a construção de pertencimento étnico-racial positivo, empoderamento de estudantes negros e negras, e formação do sujeito de direito, ao abordar a história do ativismo de negros e negras que resultou na conquista das cotas raciais. Um caminho para fazê-lo é solicitando aos estudantes que façam pesquisas de personagens envolvidos. A(o) professora(a) deve sugerir alguns nomes, de modo inclusive a garantir a diversidade de gênero e étnico-racial. Neste sentido, sugerimos, por exemplo, personagens negros e negras como: Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Nilma Lino Gomes, Ana Maria Gonçalves, Rosa Parks, Martin Luther King, Malcom X, etc. Para abordagem de lideranças indígenas brasileiras podemos citar: Raoni Metuktire, David Kopenawa, Sônia Guajajara, Jacir de Souza Macuxi, Valdelice Véron, Cacique Babau, etc.

Por fim, no quinto momento, colocamos os estudantes para a resolução de uma questão sociocientífica (QSC) em que o estudante é colocado a tomar decisão se irá se inscrever como beneficiário ao sistema de cotas raciais para ingresso à universidade ou não. Antes, contudo, faz-se um exame do caso apresentado, a situação, os diálogos, a partir de questões orientadoras. Consideramos importante nesse momento  o debate questões como: a) validade do sistema de cotas para negros nas universidades, apesar da negação da existência de raças humanas a partir de estudos genéticos; b) o direito que muitos possuem de solicitar uma vaga na universidade pelo sistema de cotas raciais; c) o significado que as cotas raciais apresenta para a  expectativa de que tenhamos uma sociedade com menores índices de desigualdade social, a caminho da experiência de  índices de igualdade social, não se tratando meramente de um reclame de candidatos/as a cotas raciais ao direito de acesso ao ensino superior.

Mesmo com as discussões prévias, é comum o/a docente se deparar diante da manutenção de discursos que associam a política de cotas raciais a privilégio ou que considera a igualdade no sentido universal que contradiz a necessidade de uma discriminação positiva e valorização identitária. Podemos notar isto neste fragmento de um episódio de ensino:

Professora: E você vai optar pelas cotas/ ou como é?

Estudante 3: Eu ainda não sei pró/é num negócio que eu tenho que pensar muito/

Professora: Como assim?

Estudante 3: É porque assim/É uma coisa pró que pra mim é muito contraditório/ isso pra mim é muito contraditório

Professora: Como assim contraditório? Diga aí pra gente/pra gente vê se pode ajudar/ não é meninos e meninas? ((Docente chama atenção ao ruído de conversas paralelas))

Estudante 3: Porque é um sistema que quer dá igualdade separando

Estudante 4: Tu já viu/ ((discente concorda com a colega))

Estudante 3: Dando privilégios/ Eu não entendo isso/ é uma coisa de se pensar bastante

Por essa razão, além das questões que mencionamos acima, é recomendado que conceito de equidade seja debatido, a apresentado como uma maneira de garantir a igualdade, baseada no reconhecimento e respeito às diferenças. Não é possível tratar de modo igual grupos que foram secularmente beneficiados e de outros grupos que foram secularmente privadas de benefícios. Tanto a história das relações entre povos negros e indígenas com descendentes de europeus desde o Brasil colônia, quando os dados atuais de desigualdade social do país, mostram que as pessoas brancas são o exemplo dos primeiros, e as pessoas não-brancas são exemplos dos segundos. 

A despeito dos problemas encontrados nos episódios que trouxemos na narrativa, tivemos alguns resultados importantes: (1) ao lerem e discutirem o caso, os estudantes reconheceram semelhanças entre as falas do diálogo do caso e suas falas na primeira aula da sequência, e as problematizaram; (2) estudantes negros e negras que inicialmente posicionavam-se contrários as cotas raciais, ao final escolheram optar por se beneficiar das cotas.

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