Materiais Curriculares Educativos

APRESENTAÇÃO

Este Material Curricular Educativo apresenta possibilidades de abordar conteúdos conceituais de ensino de evolução, integrados a um exame crítico da natureza da ciência, e de seu papel na construção de estereótipos de raça e gênero, a partir do estudo de caso da história de Sarah Baartman.  Sarah Baartman, uma mulher da etnia KhoiKhoi, da África do Sul, foi exibida em exposições antropológicas na Europa e teve seu corpo invasivamente estudado por naturalistas do Museu de História Natural de Paris entre 1810 e 1815. Esse episódio tem sido considerado pelas feministas como um dos momentos históricos em que a objetificação da mulher negra se consolidou na sociedade. 

Propõe-se uma sequência didática com abordagem interdisciplinar, a partir do diálogo entre Biologia e História, organizada a partir da interpretação e debate de trechos do filme “Vênus Negra”. O filme, lançado em 2010 sob o título original de “Venus Noire”, e dirigido por Abdellatif Kechiche, conta a história de Baartman, desde sua chegada em Londres em 1810 até sua morte em Paris, onde teve seu corpo estudado por naturalistas do Museu de História Natural. São apresentadas cenas com a ambiência da Europa do século XIX, protagonizadas pela atriz cubana Yahima Torres.  Sugere-se o exame de pelo menos duas cenas do referido filme: (1) a exposição do molde e desenhos da anatomia do corpo de Sarah Baartman para a comunidade científica por Georges Cuvier, para defender sua tese de que o grupo humano do qual ela pertencia era um elo evolutivo entre os símios e os humanos; (2) e cena que retrata os freak shows em que Sarah apresentava-se para público geral, protagonizando o papel de uma selvagem. A partir dessas cenas, propõe-se uma discussão crítica sobre o papel do discurso das ciências biológicas na produção de identidades e de estereótipos de gênero e raça, e na determinação de hierarquias e desigualdades entre grupos humanos na sociedade.

 

As cenas selecionadas permitem a abordagem de conteúdos relativos à história do desenvolvimento das teorias da evolução, e suas aplicações nas ditas ciências da raça no século XIX, e mobilizam os estudantes para o debate, exame crítico e a tomada de posição frente às construções socioculturais de gênero e raça, localizando discursos de poder que perpassam tais construções.

Por que tratar de raça e gênero na educação básica a partir de uma abordagem interseccional e interdisciplinar?

O que define o gênero de uma pessoa? Ainda podemos falar em raças humanas? E a sexualidade? Tem algum padrão? Essas são algumas questões que as (os) estudantes trazem com frequência para a sala de aula de ciências/biologia, com a expectativa de que nós saberemos as respostas relativas à constituição humana. Quando entramos no campo teórico das questões identitárias, no entanto, nos deparamos com um emaranhado de teorias de distintos campos de conhecimento, que, no geral, não trazem respostas simples e definitivas sobre o tema, e nos fazem refletir sobre a impossibilidade de respondê-las sem examinar e posicionarmo-nos em relação às diferentes perspectivas que se apresentam sobre essas questões.

Um dos aspectos que geram polêmicas nos debates sociais sobre identidades diz respeito aos seus fatores determinantes, se são fatores biológicos, socioculturais ou psíquicos. De um modo geral, tem se construído na comunidade científica um maior consenso de que a identidade dos indivíduos é resultante da interação entre estes fatores. Entretanto, existe, a depender do objetivo, uma valorização de um desses aspectos sobre os outros. Na sociedade observamos distintos posicionamentos que nem sempre se encontram bem argumentados e informados. Os argumentos sobre os fatores responsáveis pela construção de identidades são tão confusos quanto entendimento da diversidade de identidades existentes e como elas são construídas.

Recorrer à Biologia e autorizá-la, quase que exclusivamente, a falar a esse respeito diz muito sobre como nossa sociedade interpreta e enfrenta os debates identitários. Manter certos paradigmas, como a naturalização das diferenças de raça, sexo e gênero, por exemplo, contribui para a manutenção de privilégios a certos grupos em detrimento da garantia a direitos humanos a outros, que foram (e são) historicamente subalternizados pela sociedade, com contribuições significativas de campos e setores da ciência.

Produções científicas, sua divulgação e ensino, influenciaram, e ainda influenciam, na construção de visões deterministas biológicas, as quais, ao longo dos anos, sugestionaram modelos identitários ditos normais e anormais (desviantes), ditando normas na construção de identidade. Assim, se o indivíduo nasce do sexo feminino, segundo as características morfológicas determinadas pelas biomédicas, ela deve se correlacionar socialmente com o que se espera de uma mulher. Sua identidade vai sendo moldado desde o nascimento baseado em aspectos biológicos que foram determinados pela ciência. Esse processo, no qual a ciência irá influenciar a produção de identidades, chamamos de alterização científica (ARTEAGA, 2015).

E como essa discussão chega à escola? Como a gente, enquanto professor(a), pode contribuir para esses debates de forma crítica e construtiva?

Assim como a ciência, a escola também representa uma instituição social importante na construção de identidade das pessoas, via a reprodução dos discursos científicos (por exemplo, nas aulas de ciências/biologia) e dos processos de socialização que são marcados pela segregação das diferenças, estimulando um cenário de desigualdades.

As questões de gênero e raça foram definidas como temas transversais nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1996) sendo de conhecimento da maioria do corpo docente. Atualmente com a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e com o avanço das discussões conservadoras, observamos a retirada do termo gênero dos Planos Nacionais de Educação locais e o constante ataque às propostas educativas que pautem as questões de gênero e sexualidade, fazendo com que tenhamos um retrocesso em uma discussão tão necessária em termos de reconhecimento de direitos (SOUZA JUNIOR, 2018). 

Como resultado, podemos ter um ambiente escolar estéril, que se omite em tratar assuntos de suma importância para a educação dos indivíduos, o que se reflete numa sociedade extremamente ignorante e agressiva quanto ás questões identitárias.

É gritante a cor e o gênero da dor de quem é alvo dessa omissão e violência.  Não dá para dissociar os dados de desigualdade social desses marcadores sociais de identidade, e tão pouco deixar de interpretá-los à luz do que os movimentos sociais em prol dos direitos humanos têm nos sinalizado sobre os processos de segregação e marginalização que ocorrem em nossa sociedade, e o modo como operam por meio de experiências interseccionais de opressão de raça, gênero, sexualidade e classe. Mas qual é origem desses processos? De onde vêm e o que mantêm as construções de estereótipos de inferioridade/superioridade de certos grupos? O que faz com que os jovens negros sejam vistos como potencialmente criminosos? As mulheres como objeto de desejo e consumo?   O que alimenta o ímpeto de agredir e exterminar a população LGBTT, vista como uma anomalia?

Entender os processos históricos e o aparato ideológico por trás da construção desses estereótipos nos ajuda a desnaturalizá-los, e a problematizarmos as relações de poder e dominação que os sustentam. É aí que entra a escola. As professoras e os professores podem ser agentes e mediadores de uma educação menos opressiva, ou combatente de opressão, e como consequência de uma sociedade menos violenta.

No que se refere ao ensino de ciências, é preciso ressaltar o impacto das produções científicas sobre o corpo dos indivíduos, e seu papel na consolidação e permanência de visões deterministas na sociedade. Em relação às questões de gênero, o termo determinismo biológico refere-se às produções científicas (discursos, práticas, produtos tecnológicos) que, fundamentadas em aspectos biológicos dos seres humanos, ditam o lugar de grupos sociais (mulheres, homens, negros, homossexuais, lésbicas etc) na sociedade, além de seus comportamentos e identidades (CITELI, 2001).

Situar a construção científica a um contexto histórico e sociocultural pode proporcionar a desmitificação da ciência enquanto instituição social “reveladora da verdade”, única e neutra. É possível também, por essa via, significar o conhecimento científico como produto de uma comunidade científica (grupo de pessoas), rompendo com a ideia hegemônica do cientista individual, genial, excêntrico e desinteressado, enfatizando o papel que valores, interesses e ideologia podem desempenhar nessa produção. De outro modo, é preciso também revelar e dar acesso a outras formas de se pensar a construção científica, associando valores distintos que vão de encontro à lógica de manutenção dos espaços de poder na sociedade (LOURO, 2000).

Do ponto de vista teórico, enxergamos no estudo de caso de Sarah Baartman uma ferramenta poderosa para tratar, de forma interdisciplinar, o papel que historicamente as ciências biomédicas desempenharam na construção de identidades e de estereótipos de gênero e raça, e de um aparato teórico e ideológico para processos de subjugação e opressão de grupos humanos. Essa compreensão pode ser o primeiro passo para que nos posicionemos criticamente frente aos processos persistentes de opressão e privação de direitos humanos a grupos alvos de intersecção entre racismo, sexismo e opressão de classe.  Foi com essa perspectiva que nos lançamos em um esforço teórico e prático no desenvolvimento de uma sequência didática que atendesse nossas expectativas. 

Colaboraram no processo de elaboração, aplicação e investigação desse Material Educativo Curricular as/os docentes: Hemilly Cerqueira Souza, Nancy Goretti Brêda Mascarenhas Assis, Juan Manuel Sanchez Arteaga.

 

Referências

ARTEAGA, Juanma Sánchez et al. Alterização, biologia humana e biomedicina. Scientiae Studia, v. 13, n. 3, p. 615-641, 2015

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, 1996.

CITELI, Maria Teresa. Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento. Estudos Feministas, ano 9, p. 131 a 145, 2001.  

LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade, 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.7-34.

 

SOUZA JUNIOR, Paulo Roberto. A questão de gênero, sexualidade e orientação sexual na atual base nacional comum curricular (BNCC) e o movimento LGBTTQIS. Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, v. 4, n. 1, p. 1-21, 2018.

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