Ciência, Raça e Educação

Em 9 de janeiro de 2003 foi instituída a Lei 10.639/2003, a qual torna obrigatório o ensino de história da África e das culturas afro-brasileiras e indígenas nas escolas públicas e privadas da educação básica. Trata-se de uma conquista dos movimentos sociais negros, os quais, desde o início do século XX, têm como uma das principais reivindicações o direito a uma educação que provenha à população negra o conhecimento “da história de seus ancestrais, dos valores e da cultura de seu povo, podendo a partir deles reivindicar direitos sociais e políticos, direito à diferença e respeito humano” (GONÇALVES, 2000, p. 337). A referida lei passou a ser regulamentada com a aprovação do Parecer CNE/CP nº 3, de 10 de março de 2004, que, juntamente com a Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, instituiu as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (BRASIL, 2004). 

Esse aparato legal busca regulamentar e orientar propostas pedagógicas e práticas de ensino que promovam a inclusão de conteúdos referentes a história e cultura afro-brasileira, africana e indígena no currículo escolar, promovendo a educação das relações étnico-raciais em todas as áreas do conhecimento, por meio da articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas e movimentos sociais (BRASIL, 2004).

Nossa intenção, nessa plataforma, é apontar razões e caminhos pelos quais professores e professoras da área de Ciências Naturais, e especialmente de Biologia, devem e podem desenvolver propostas pedagógicas que atendam às demandas de uma educação das relações étnico-raciais, tal como sancionada pela Lei nº 10.639/03 e proposta pelas diretrizes curriculares nacionais (BRASIL, 2004). 

Para tanto, desenvolvemos propostas que utilizam a história do racismo científico como contexto para organização dos conteúdos curriculares do ensino de Biologia de modo articulado a objetivos da educação das relações étnico-raciais, como a superação de estereótipos, a construção de identidade étnico-racial positiva e o combate ao racismo. Propõe-se que tais objetivos sejam alcançados por meio da compreensão de como as ciências biológicas e biomédicas, a partir da construção e do uso do conceito de raça como categoria para descrever a diversidade humana, contribuíram e participaram de processos históricos de discriminação, segregação e privação de benefícios de grupos étnico-raciais e sociais. Especificamente, como, no Brasil, discursos e práticas dessas ciências estiveram presentes nos processos que tornaram o racismo um elemento estrutural da nossa sociedade.

Como argumentam filósofos e antropólogos negros como Achille Mbembe (2014), Kabengele Munanga (2004) e Silvio Almeida (2019), a raça é, em grande parte, uma invenção da ciência ocidental moderna.  Trata-se de uma categoria que emergiu ao final do século XVII e início do século XVIII, a partir da prática científica de classificar de maneira hierarquizada a variabilidade humana, e se consolidou como apoio ideológico ao colonialismo europeu e como tecnologia para oprimir, subjugar e escravizar povos das Américas, África, Ásia e Oceania. Segundo Munanga (2004), essa classificação pavimentou o caminho para o racismo estrutural, que experimentamos ainda hoje nas sociedades contemporâneas, a partir de duas estratégias: o estabelecimento de uma relação intrínseca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais de grupos humanos, e a construção de um sistema de hierarquização das raças em superiores e inferiores. 

Um dos primeiros naturalistas a contribuir para a primeira dessas estratégias foi o cientista e médico sueco Lineu (Carl Linnaeus), considerado pai da taxonomia.  Lineu propôs uma classificação da variabilidade de seres humanos em quatro grupos raciais: Homo sapiens europeus, Homo sapiens asiaticus, Homo sapiens afer e Homo sapiens americanus. Essa classificação foi apresentada em 1758, na décima edição de Systema naturae, livro em que Lineu apresenta seu sistema de nomeação das espécies e estabeleceu sua organização dos seres nos reinos animal, vegetal e mineral. Nessa obra, a classificação da espécie Homo sapiens em raças teve como principal critério físico a cor da pele, associado a características psíquicas e morais. Assim, por exemplo, os brancos (Homo sapiens europeus) foram descritos como sanguíneos, ardentes e engenhosos, e os negros (Homo sapiens afer) como indolentes, preguiçosos e negligentes. 

A hierarquização da raça por meio da relação entre parâmetros físicos e distinções morais e intelectuais ganhou maior impulso, no entanto, a partir da segunda metade do século XVIII, quando começaram a ser empregadas medidas antropométricas para fundamentar a classificação da variabilidade humana. A partir de então, a raça passa a ser descrita pela “objetividade” de medidas e análises sistemáticas de crânio, ângulos faciais e outros parâmetros corporais, dando origem a uma série de campos, a exemplo da frenologia, da craniologia e da antropometria, que tinham como objetivo o estabelecimento de relações de causa e efeito entre medidas da caixa craniana, forma e volume cerebral, aptidão intelectual e/ou comportamentos morais. Podemos citar as obras de Franz Joseph Gall (1758-1828), Paul Broca (1824-1880) e Cesaere Lombroso (1836-1909) como representativas desses campos, respectivamente. 

A segunda tradição que teve grande impacto na “ciência da raça” foi o pensamento evolutivo darwinista (SCHWARCZ, 1993; SÁNCHEZ-ARTEAGA, 2009). Com base nos conceitos de competição inter-racial e extinção de raças – centrais nos discursos darwinistas sobre a evolução humana no século XIX –, foram construídos discursos que naturalizavam os extermínios e genocídios de grupos étnicos promovidos pelo imperialismo britânico, a exemplo do extermínio dos tasmanianos na década de 1870, desempenhando, portanto, a função ideológica de legitimar as ações imperialistas da Inglaterra vitoriana. Podemos citar, ainda, a sociologia evolutiva de Hebert de Spencer e a eugenia de Francis Galton, as quais fundamentaram projetos de eugenia norte-americanos e alemães.

Essas teorias raciais europeias foram apropriadas pela reduzida elite intelectual brasileira – médicos, naturalistas, literatos e bacharéis de direito –, que as utilizou, no período de transição entre o Império e a República, para analisar os problemas sociais e resolver o desafio da construção de uma identidade nacional e da transformação do Brasil em um estado moderno.

Destacamos, por exemplo, a obra de Raimundo Nina Rodrigues, médico maranhense, eminente professor da Faculdade de Medicina da Bahia do final do século XIX, considerado o principal teorizador da inferioridade biológica e intelectual do negro no Brasil. As ideias de Lombroso, o conceito de degenerescência e as teorias darwinistas sociais foram referências para Nina Rodrigues fazer interpretações sobre o índice de criminalidade e a incidência de certas doenças mentais entre os diferentes grupos étnico-raciais brasileiros.  Longe de serem considerados como efeitos diretos da pobreza extrema e das profundas desigualdades sociais herdadas do passado escravocrata do Brasil, os elevados índices de criminalidade, assim como a maior presença de determinadas doenças e peculiaridades psiquiátricas entre as massas de negros e mestiços, eram interpretados por Nina Rodrigues como evidências da degeneração racial, proveniente do cruzamento entre raças em diferentes graus de evolução (ODA, 2001; SÁNCHEZ-ARTEAGA, 2017; SCHWARCZ, 1993). Estas ideias foram apresentadas em obras como Mestiçagem, degeneração e crime, publicada em 1899, e As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, publicada em 1894, na qual Nina propunha um código legal distinto para as diferentes raças que habitavam o Brasil. A popularização dessas ideias pode nos ajudar a compreender a naturalização da criminalização das populações negras no Brasil até os dias atuais.

Outro exemplo de apropriação das teorias racialistas europeias foi o uso das ideias darwinistas por João Batista Lacerda para argumentar a tese de que, em 2012, não teríamos mais negros no país. Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, argumentou – em um manuscrito apresentado no Primeiro Congresso Mundial das Raças, em 1911 – que a seleção natural, operando em um contexto de políticas públicas de incentivo à imigração europeia, levaria, no espaço de três gerações, ao embranquecimento da população brasileira (SCHWARCZ, 2011). Ao final do manuscrito, Lacerda apresenta oito conclusões, entre as quais reconhece a existência das raças branca e negra, o caráter transitório dos mestiços e o efeito “nefasto” da importação do negro no Brasil. Atribui, no entanto, um papel positivo e importante dos mestiços no progresso do país, enaltecendo sua inteligência, aptidões técnicas e artísticas, rivalizadas “frequentemente com o próprio branco”. Como podemos concluir, encontram-se aí ideias que desempenharam papel central no desenvolvimento da ideologia do embranquecimento.

É importante que se reconheça que essas interpretações racistas da sociedade, amplamente produzidas, divulgadas e aceitas no Brasil oitocentista, não ficaram livres de crítica e oposição de vozes dissonantes. A esse respeito, como veremos em uma de nossas propostas, destaca-se a trajetória e obra de Manuel Querino, intelectual negro e homem público do estado da Bahia na transição entre o século XIX e o século XX, considerado um dos principais combatentes do racismo científico propagado pela Faculdade de Medicina entre 1870 e 1930. Nas obras O colono preto como fator da civilização brasileira e A raça africana e seus costumes na Bahia, Querino opõe-se à naturalização das diferenças entre negros e brancos e da suposta inferioridade antropológica do Negro, argumentando que as qualidades negativas atribuídas ao africano com intuito de desqualificá-lo não seriam inatas, mas sim os resultados da escravidão. De modo contrário, defendia a tese de que o africano escravizado, designado por ele de “o colono negro”, foi um fator imprescindível na colonização e na civilização do Brasil.  Podemos citar, ainda, o combate à psiquiatria racializada de Nina Rodrigues empreendido por Juliano Moreira, médico psiquiatra baiano e negro, diretor do primeiro hospital psiquiátrico do país entre 1903 e 1930.

Após a Segunda Guerra Mundial e o genocídio dos judeus perpetrado pela Alemanha nazista, a “ciência da raça” começa a ser problematizada e desacreditada por setores mais dominantes, diante da constatação do perigo que o racismo científico representava como ideologia e do caráter político e social do conceito de raça. Esse processo é inicialmente impulsionado pelo Estatuto da Raça da Unesco, e, mais recentemente, pela deslegitimação do estatuto científico do conceito de raça por parte dos geneticistas contemporâneos, sob o argumento de que os resultados do projeto Genoma confirmam dados de estudos de genética de populações de que as antigas categorias raciais não podem ser definidas com base na genética. 

No entanto, esse processo não tem levado automaticamente à desracialização de nossas sociedades, e o conceito de raça permanece sendo usado para naturalizar desigualdades e legitimar segregação de grupos étnico-raciais, socialmente considerados minorias. De igual modo, o racismo científico não é um fenômeno do passado; ao contrário, como nos aponta o trabalho de Sánchez Arteaga e colaboradores (2015), ele sobrevive, por exemplo, em práticas contemporâneas das ciências biomédicas, como são os casos de racialização de doenças, exclusão social e racismo na assistência sanitária, além das desigualdades biomédicas baseadas em concepções de raça e etnia, no que diz respeito ao acesso a serviços de saúde por imigrantes e refugiados em numerosos países desenvolvidos. 

Com esse breve histórico do desenvolvimento do conceito de raça, estamos propondo que, por meio da abordagem da história do racismo científico, é possível articularmos objetivos de uma educação das relações étnico-raciais aos conteúdos que tradicionalmente compõem o currículo da Biologia. O estudo das obras de Nina Rodrigues, João Batista Lacerda e Manuel Querino, por exemplo, pode promover a compreensão da origem histórica de padrões de normalidade e de estereótipos que ainda estão fortemente presentes no ideário da população brasileira e que orientam tensas relações sociais, a exemplo da ideologia do embranquecimento, da erotização e objetificação do corpo da mulher negra, da criminalização de jovens negro – articulados ao ensino do conceito de espécie –, das práticas de classificação da biodiversidade, do conceito de herança e das relações entre processos genéticos, epigenéticos e fatores ambientais na expressão de fenótipos, das teorias da evolução e dos sistemas do corpo humano. 

A história da descoberta e da racialização da anemia falciforme, tema de um dos nossos materiais curriculares, é, por exemplo, um excelente contexto para o ensino da teoria darwinista da seleção natural, articulado ao objetivo de empoderarmos estudantes para se prevenirem de práticas de biomedicina potencialmente discriminatórios. Tal objetivo também é contemplado na sequência didática sobre o uso sem conhecimento e sem consentimento das células do câncer de colo de útero extraídas em 1950 de Henrietta Lacks, em que o debate sobre o uso de corpos de pessoas negras e pobres pela ciência é integrado ao ensino de biologia celular e câncer. Em outra de nossas propostas, buscamos examinar como o discurso da genética contemporânea sobre raça tem sido mobilizado nos argumentos empregados no debate sobre cotas raciais na universidade pública, de modo a promover o reconhecimento da relação entre racismo e desigualdades sociais e a compreensão da noção de reparo social que fundamenta a política de ações afirmativas no Brasil, articulados ao ensino dos conceitos de herança, variabilidade, genótipo/fenótipo e ancestralidade. 

Professora e professor, estamos, portanto, nessa plataforma apresentando alguns exemplos de temas relativos à história do racismo científico e ideias de como trazê-los para a sala de aula, com a intenção de que se sintam estimulados e apoiados a desenvolverem ações pedagógicas que atendam à Lei 10.639 e promovam uma educação das relações étnico-raciais no ensino de Biologia e demais disciplinas e componentes da área de Ciências Naturais, de modo interdisciplinar com outras áreas do conhecimento. 

Para entender como nossas propostas dialogam com as recomendações dessa lei em termos curriculares, pedagógicos e didáticos, consulte a seção “Currículo e Ensino”.

Referências

ALMEIDA, S. L. de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 264p. 

BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004.

MBEMBE, A. Crítica da razão Negra. Lisboa: Antigona. 2014.

GONÇALVES, L.A. Negros e educação no Brasil. In: LOPES, E. M. et al. 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 325-346.

MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Cadernos Penesb, v. 5, p. 16-34, 2004. ( disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf

ODA, A. M. G. R. A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira. Psychiatry On-line Brazil, part of The International Journal of Psychiatry, v. 6, n. 12, dez. 2001. ( disponível em http://www.polbr.med.br/ano01/wal1201.php

SÁNCHEZ-ARTEAGA, J. M. Las ciencias y las razas en Brasil hacia 1900. Asclepio, v. 61, n. 2, p. 67-100, 2009. (disponível em http://asclepio.revistas.csic.es/index.php/asclepio/article/view/285/281 )

SÁNCHEZ-ARTEAGA, J.; RASELLA, D.; GARCIA, L. V.; EL-HANI, C. Alterização, biologia humana e biomedicina. Scientiae Studia, v. 13, n. 3, p. 615-41, 2015. (disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ss/v13n3/2316-8994-ss-13-03-00615.pdf

SÁNCHEZ-ARTEAGA, J. Biological Discourses on Human Races and Scientific Racism in Brazil (1832-1911) Journal of the History of Biology , v. 50, p. 267-314, 2017

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SCHWARCZ. Lilia Moritz. Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptistade Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p.225-242. (disponível em : https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v18n1/13.pdf)

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